Rui Cardoso Martins

Filhinhos de um desobediente

(Ilustração: João Vasco Correia)

Não sabia Flávio, profissional do comércio ambulante, como uma crise inesperada lhe ia resolver um drama: como levar os filhinhos à escola. Estava o estado de emergência a estalar, os restaurantes, lojas, tribunais, escolas, tudo quase a fechar, e o advogado de Flávio despedia-se da juíza com dois dedinhos à distância:

– Não a vou cumprimentar, sotora, por causa do coronavírus!…

E saíram para o átrio, o advogado conformado e Flávio enraivecido. Antes, tinha escutado a sentença:

– Parte da prova resultou da própria admissão dos factos por parte do arguido. O arguido o que não admitiu foi que a recusa do teste do álcool o fizesse incorrer na prática de um crime. Nessa parte, a versão do arguido não nos mereceu qualquer credibilidade. Os agentes que aqui depuseram disseram com toda a certeza que advertiram o arguido, de que o arguido estava informado de que com este tipo de comportamento cometia um crime. Por outro lado, o arguido até foi detido por se recusar a fazer o teste do álcool e, por fim, isso é do conhecimento de todos…

Flávio, no seu bigodinho austero, preparava-se para uma condenação por desobediência. Recusara soprar o balão do álcool, não quisera ir ao hospital tirar sangue. Experiência com a polícia tem ele, porque já antes foi detido “mas por crimes diferentes”, disse a juíza, “e portanto entende-se que ainda se justifica uma pena de multa”.

– Há a circunstância favorável de ter admitido parcialmente os factos. É adequado e suficiente a condenação do arguido na pena de 80 dias de multa à taxa de 5 euros, que perfaz 400 euros. E na proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de seis meses.

Aqui ficou Flávio com o comércio ambulante a acelerar dentro da sua cabeça, pensamentos maus que deram uma volta aos dedos da mão, e regressaram ao cérebro. Com os olhinhos de lado, escutava:

– Está obrigado a entregar a carta de condução no prazo de dez dias após o trânsito em julgado da decisão. O senhor Flávio percebeu porque é que foi condenado?

– Sotora, posso?, interrompeu o advogado de Flávio.

– Diga.

– O arguido não tem a carta de condução porque foi apreendida pela PSP… porque está caducada. Numa operação de… não sei se ele tem ali a guia, mas não tem carta porque está caducada.

– De qualquer forma, mesmo caducada, está apreendida?

– Apreendida pela PSP, sim.

– E onde está a carta?

– Eu não sei qual é a esquadra, confessou Flávio.

Depois, o advogado despediu-se com distância social e saíram para o átrio. A mulher calada, atrás. Flávio abriu o coração:

– Como é que eu vou levar os meus filhinhos à escola?!

Um pai que conduz bêbedo com a carta caducada, não só caducada como apreendida, alguém que é preso porque se recusa a soprar o balão que mede o álcool no sangue, mas prova a sua extremosa cidadania de pater famílias:

– E agora, para levar os meus filhinhos à escola?!

– Mas levar os filhinhos o quê, estás proibido de conduzir durante seis meses!, rosnou-lhe a mulher.

– E quando é que eles me vão dar a carta?…

– Mas tu não tens a carta, está caducada!, torceu-se o advogado de Flávio, num tu inesperado.

O desobediente vergava-se de amor pela escola. No pescoço magro, os tendões estiravam-se como arames no estendal. Todo ele rangia.

– A escola dos meus filhinhos!

Na cara da mulher surgiu a ameixa seca da desilusão: pensasses nisso antes!, casei-me eu com este, tens de renovar a carta e depois esperar outros seis meses!

O advogado adoçava o estouvado Flávio:

– Agora vamos aguardar o despacho da juíza, que é para ver o que é que diz, e depois vai-se lá buscar a carta…

Flávio, e hoje em casa, como é? Fichas de matemática, composições de português, tutoriais de história? Acompanha o estudo à distância dos seus filhinhos, ou não tirou carta de computador e internet?

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)