Espelho meu, espelho meu… Quem sou eu?

A autoestima constrói-se quando ainda somos tenros. Parte da avaliação que fazemos de nós próprios molda-se a partir da relação com os outros. Tudo ajuda a ditar se seremos tiranos, calimeros ou conscientes.

A memória não vacila. Tiago Paiva, ator, 31 anos, “pessoa confiante”, recorda que no início da vida acreditava pouco em si. “Só quando me propus a fazer certas coisas, e quando comecei a atingir objetivos, é que mudei.” Antes disso, já era hábil a ultrapassar frustrações. “Era pequeno e adorava ver a série ‘Médico de Família’. Mas, por causa dos horários que os meus pais me estipulavam para dormir, só conseguia assistir a metade. Era frustrante. Então comecei a escrever-lhes bilhetes a dizer que gostava muito deles e pedia-lhes para me deixarem ver a série. Manipulava. Bem, não era manipular, porque era verdade, eu gostava mesmo deles, mas assim percebiam que aquilo era importante para mim e que não fazia mal deitar-me um bocadinho mais tarde.”

Sem saber, os pais foram sendo guias nesse processo de autoconfiança, conceito que anda de braço dado com a autoestima. Por exemplo, percebendo a habilidade do pequeno Tiago para a música, puseram-lhe um violino nas mãos. Prática que abandonou aos “12 ou 13 anos”. Aos 16 voltou ao instrumento e juntou-se a uma banda. Empenhou-se. Mas a dada altura percebeu que não seria com o grupo que obteria sucesso. Decidido a singrar, viu nas discotecas e nos eventos a oportunidade de cumprir o sonho de viver da música. Um DJ a quem falou dos seus planos pediu-lhe algumas gravações. O feedback foi duro. “Disse-me que não gostava, que aquilo era uma merda. Fiquei mal mas andei.” E voltou-se para a arquitetura.

Certa vez, estava ele num ateliê da faculdade a fazer um trabalho com colegas quando lhe calhou passar uma playlist para dar mais ritmo ao ambiente. No meio do repertório estavam algumas músicas interpretadas pelo próprio, no violino. Uma delas chamou a atenção de alguém que, ao saber que a gravação era de Tiago, o convidou para tocar numa discoteca, tinha ele 19 anos. “Correu super bem. Passados dois anos e meio, estava a viver da música. Estive assim seis ou sete anos.” No início, os pais duvidavam dele. “Não queriam que eu fosse para Lisboa. A minha mãe alertava-me que a música é de altos e baixos, que era arriscado viver só do violino. Fez o que fez por ser boa mãe. Depois, deixaram de se preocupar. Quando as coisas começaram a acontecer ficaram orgulhosos. Não me diziam, mas demonstravam quando falavam de mim aos amigos. E isso era um incentivo.”

Como explica a pedopsiquiatra Bárbara Romão, “a base da autoestima forma-se na primeira e na segunda infância, dos zero aos seis anos, quando a criança percebe se é gostável, o que resulta das relações humanas com as figuras mais representativas, geralmente os pais”. São eles o primeiro espelho. “Se dissermos coisas boas a respeito delas, vão acreditar. Se dissermos coisas más também.”

Sem surpresa, são essencialmente os cuidados dos pais que as fazem sentir amadas. “Se sentirem que são correspondidas vão investir, se não for um sentimento recíproco vão ficar inseguras.” Em ambos os casos, fabricam uma imagem de si próprias que, avisa Bárbara Romão, “vai durar para sempre”. Por isso é tão importante, quando se é pequeno, que o amor-próprio seja favorecido. “E não tem só a ver com o dar amor, mas dar também segurança, autonomia e ensinar a esperar. A saber que vão passar por momentos tristes, por frustrações.”

Tiago Paiva aprendeu a lição com o seu violino: “Não devemos abandonar algo só porque uma pessoa não gosta do que fazemos e nos deita abaixo”. E só por isso não desistiu, nem desiste, quando mete na cabeça alguma coisa. Aconteceu, por exemplo, no seu último projeto. “Disse aos meus amigos que ia escrever uma série e toda a gente me gozou e chamou de maluco. Com a quantidade de nãos que ouvi, se tivesse desistido, a ‘4Play’ não seria a série mais vista da RTP2. Ando há dois anos e meio na luta para ter apoios para a segunda temporada. Não vou desistir até conseguir.” Tiago sabe. “Há quem me ache convencido.” Atitude que rejeita. “Quando me conhecem percebem que é mesmo confiança. Já me disseram que não sou o gajo mais bonito do Mundo, mas que a minha confiança é atrativa. E é sempre bom rodeares-te de pessoas assim.”

O ator é pragmático. Mal saberá que a psicologia lhe dá razão. “Quando somos miúdos precisamos de validação. Quando cresci percebi que não precisava que os outros me validassem, mas sim da minha validação. Acho que é a atitude certa, tem de ser de dentro para fora, não faço para os outros, faço para mim e depois pode ser para fora.” Assume que este discurso nem sempre é fácil de ser aplicado. “Eu digo isto tudo mas há sempre carência de aceitação dos outros, principalmente quando temos trabalho como eu tenho, de escrever, ser ator, fazer comédia.” Há outro aspeto: “O ego, um balão que é muito complicado gerir, e que tento que seja constante”. Até para ver sempre a realidade com os óculos da transparência. “Ninguém é confiante a cem por cento, toda a gente tem inseguranças, mesmo que não as passe para os outros. Eu considero que sou confiante, mas tenho as minhas fragilidades. Por exemplo, um problema: quero fazer tantas coisas que acabo por dispersar. Estou agora a aprender a focar-me no mais importante.”

Barro mole e barro duro

Uma boa autoestima, segura e bem construída, vê-se em ações subtis. Bárbara Romão enumera algumas: “Quando sabemos quem é de confiança e quem não é; quando se acredita na capacidade dos outros; quando se elogia alguém sem problemas; quando a pessoa não tem necessidade de mentir, de se esconder; quando assume aquilo que é”. E tudo isso se adquire na infância. “É muito importante ter-se orgulho na criança que se tem, com as suas características, independentemente de quais sejam. Bom ou mau aluno, atlético ou não. Dizer e mostrar: gosto de ti na mesma.” Isto porque há pais que “só investem se o filho der para pôr na montra”. Ou seja, para serem exibidos como modelo, para a sociedade.

E, se estes cuidados não forem preservados nessa fase, em adulto o que se pode fazer? “A personalidade forma-se muito cedo e fica completa aos 25 anos. Quanto mais flexíveis formos mais conseguimos crescer ao longo da vida. Quem tem melhor autoestima aceita quando falha, aceita a falha do outro e quer crescer, melhorar, aceita a crítica. Mas nunca se vai mudar um adulto com uma autoestima alta para baixa. É como o barro, as crianças são barro mole, os adultos são barro duro, já é difícil moldar.”

Aos 66 anos, o entertainer Herman José diz que sempre que mudou foi por vontade própria. “Nunca senti que houvesse verdadeiramente crítica construtiva sobre o meu trabalho. Quer dizer, houve mas não a ponto de me fazerem mudar. Quando mudei foi porque eu achei que devia fazê-lo, por razões muito pessoais.” No entanto, afirma que as críticas mais ferozes vieram de si. “Tenho muito mais medo quando eu não gosto de me ver do que daquilo que alguém possa escrever a meu respeito.”

Ao longo das décadas, garante que a sua autoestima passou por muitas fases. “Pessoas muito lúcidas como eu estão sempre a pôr-se em causa. E não deixam que os sentimentos de autoestima irracional se sobreponham às vicissitudes do dia a dia.” Faz questão de separar as águas. As personagens que criou nada dizem sobre a sua pessoa. “O meu trabalho é trabalho. Não tem nada a ver com autoestima, com humilhar o outro, tem a ver com capacidade de trabalho e vontade de combater a preguiça.” Hoje em dia, Herman diz sentir-se um privilegiado. “Tenho saúde, tenho a minha mãe com saúde ao pé de mim, tenho trabalho, estou a fazer um programa para a RTP [“Cá por Casa”], e é impensável não sentir alguma autoestima que não me deixa cegar a ponto de ver que é uma fase terrível para as pessoas e sobretudo para os meus colegas.” De zero a dez? “A minha autoestima estaria a sete. Mas se me sair o euromilhões passa para 100.”

Ana Rita Valbom, psicóloga clínica, reforça que a autoestima se define a partir do sentimento que a pessoa tem de si própria. “Está relacionado com a confiança em si mesmo, com o autoconceito, com o que a pessoa pensa de si, das suas capacidades, dos seus valores e da forma como se coloca face ao Mundo, face aos outros e face a si própria. É um equilíbrio entre isto tudo.” Pessoas altamente narcisistas não vão tolerar quem seja, ou possa parecer ser, melhor do que elas. “Normalmente, esses procuram lugares de poder, têm capacidade de manipulação sobre os outros e só existem se tiverem seguidores. Sem pessoas a aplaudi-los a perceção deles próprios é de inexistência. São pessoas com sentimentos de grandiosidade, de omnipotência. Que precisam de diminuir os outros para se sentirem bem. Pessoas que viveram e cresceram sem qualquer tipo de limites. Dificilmente é tratável.”

A psicóloga faz a devida ressalva. “A autoestima está diretamente relacionada com o narcisismo. Todos nós temos de ter um narcisismo médio, que é a capacidade de gostar de si, de se arranjar, de prestar autocuidados, de gostar de aspetos físicos e não físicos seus. Que a levam a ser admirada pelas conquistas que vai fazendo.” Ana Rita Valbom refere ainda que não é pelo lado narcisista estar em défice que as pessoas não podem chegar longe.

A especialista aponta o foco para Ricardo Araújo Pereira e Nuno Markl, dois humoristas que reconheceram publicamente os seus problemas de autoestima. “São casos excelentes para retirar o estigma de que pessoas com baixa autoestima não podem ter profissões reconhecidas, sucesso financeiro e económico e projeção social.” É um paradoxo. “Existe a ideia de que, para se chegar a um determinado ponto, é preciso uma série de ingredientes. Não tenho dúvidas que estes dois adultos reconheceram as suas fragilidades e tratam de as cuidar, sozinhos e com profissionais. Ter boa autoestima não é dizer que sou bom em tudo, às vezes também tenho de fazer coisas em que não sou tão bom. Mas não se deixa de arriscar, de ter coragem e de arranjar formas criativas de as fazer. A pessoa com baixa autoestima pode trabalhar isso e conviver com os seus pontos fracos.”

A clínica recorda que “na fase adulta é importante a pessoa fazer a leitura de si para si”. Do que é que gosto? “Muitos adultos não sabem responder a isso, nem identificam o que os faz sentir bem. Porque, muitas vezes, queremos gostar de coisas que os outros premeiam.” É um sinal de alerta. “Quando o que eu gosto tem a ver com o reconhecimento dos outros, com projeção social, se depende da aprovação dos outros, significa que a minha autoestima está abalada.” Os gostos “devem depender de mim e dos meus interesses”. Pode-se estar a falar de coisas simples: ler, ver o pôr do sol.

“O autoconhecimento assenta na capacidade de estarmos a sós com os nossos aspetos bons e maus.” Novo regresso à infância. “Os filhos precisam de tempo para serem ouvidos. As crianças crescem, desde cedo, em estruturas coletivas. Contudo, antes de sermos grupo somos indivíduos.” Daí vai resultar o resto. “Ouvir críticas pode ser positivo, porque somos pessoas em constante construção e mudança. Mas só conhecendo-nos bem conseguimos perceber em que medida aquele comentário é adequado a mim e o que faço com ele. Caso contrário, só me vai fragilizar”, remata Ana Rita Valbom.