Rui Cardoso Martins

Derrota nas linhas de Torres

(Ilustração: João Vasco Correia)

Três linhas defensivas (85 km) construídas em segredo durante dois anos, trezentas páginas de tese copiadas; fortificações erguidas entre precipícios e cabeços estratégicos nos caminhos do Norte para Lisboa, colagem de frases alheias alinhadas, como tropas, para o ataque final à Academia. E subitamente, a bem da verdade histórica, no mesmo sítio em que as tropas napoleónicas foram paradas em 1810-12, uma invasão de plágio foi travada, derrotada em Torres Vedras, no ano da graça de 2020.

Não costumo pôr o nome real dos heróis e vilões, mas a personagem deste caso esteve há dias nos jornais e televisões, chama-se Carlos Bernardes e é presidente da Câmara Municipal de Torres Vedras. Foi condenado a dez meses de prisão, mais dois meses de multa, pelo crime de contrafacção de tese de doutoramento. Isto é, plágio. Culpado de, na sua (suposta) tese na área do Turismo, ter copiado cerca de 40 textos de outros autores, e o mais curioso é que nenhum destes era ele próprio. Um cúmulo jurídico resumido: cinco mil euros (500 dias de multa a dez euros/dia). Nunca tinha visto: um arguido acaba de ser condenado, sai da grade dos acusados e, em vez de se dirigir à porta, aproxima-se da juíza que o zurziu e dá-lhe um passou-bem, aproxima-se da procuradora que o acusou e tome lá um bacalhau. Só depois sai, de mãos nos bolsos, como um general que passeia na tempestade, ou que caminha, no rescaldo da batalha, entre carcaças de cavalos, cadáveres de soldados. Fez-me lembrar o filme “Guerra e Paz” (o russo, de Sergei Bondarchuk) quando Napoleão, com enfado, dá um pontapé na bomba redonda ainda a rabiar de faíscas, sem a fazer explodir. Mas o presidente da câmara de Torres não levava bicórneo de Bonaparte, só a careca.

O julgamento correu-lhe mal, foi mal compreendido. Lá fora, o advogado dizia para as televisões, falando por Carlos Bernardes:

– É um processo inquinado desde a sua origem e continua inquinado. Os factos e o direito que aos mesmos se aplica não bate certo, alguma coisa não está correcta.

Carlos Bernardes recorrerá, nunca admitirá culpa. Apenas a falta de algumas aspas de citação, por não ser um académico. A todas as objecções, a juíza respondeu na sentença. O que foi investigado com programa informático de rastreio de plágios e com a leitura de muitos outros documentos. Eu estava lá, e reproduzo. Usarei aspas:

“O que se apurou aqui são as conclusões constantes da perícia, que, além de recorrerem a um programa informático, recorreram a outras fontes, a pesquisas que foram directamente efectuadas e a comparação directa entre textos não necessariamente publicados online.” “E se fosse verdade que estávamos aqui perante um problema de metodologia que o arguido, por não ser um académico, não soubesse que tinha que identificar os textos como sendo citações, muito estranharia que [um dos plagiados] não tivesse dito, ‘olhe, ponha lá isso entre aspas’, o que obviamente aconteceria. Das duas uma, ou estas pessoas não leram a tese ou, se a leram, foram perfeitamente coniventes com o texto da mesma e com a colagem a outros textos e outras fontes.”

“Não resta novidade a esta obra, a única novidade que existe é uma novidade puramente formal, é uma novidade que existe por ser um recorte de textos retirados de outro lado. De facto, esta conjugação de textos separados não existe noutro lado, só existe nesta tese, mas, na perspectiva do tribunal, não é isto que determina a originalidade da obra.” “Não se pode deixar de ter em consideração em desfavor do arguido o facto de ter agido dolosamente, as exigências de prevenção, o facto de não ter confessado os factos nem ter revelado qualquer arrependimento ou consciência da gravidade da conduta e o grau de ilicitude que é superior ao médio, (…) porque está aqui em causa a obtenção do título de Doutor, a obtenção de um grau académico e a prática do crime acarreta o desprestígio da instituição que conferiu o grau ao arguido.” “Se ainda se pode ter alguma complacência com situações similares, quando as pessoas são académicas e vivem pressionadas pelas academias (…), no caso do arguido nem essa justificação existe! O arguido não tinha necessidade de fazer tese nenhuma! Não tinha nenhuma tese para fazer, não fazia!”

Um amigo meu, médico psiquiatra, diz com certa nostalgia que hoje restam poucos Napoleões. Mas há muitos esquizofrénicos que vêem um Grande Olho na rua atrás de si (já contei um caso desses). E há aqueles que, não sendo doidos nem nada que se pareça, querem como loucos fazer-se doutores.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)