Rui Cardoso Martins

Converseta devassa

(Ilustração: João Vasco Correia)

Fui vítima e testemunha de uma converseta miserável e devassa, como o foram dez milhões de portugueses. Seria bom já se terem esquecido, caros leitores, mas é da natureza de personalidades reles transformarem em obra comum as suas obsessões. Uma vez escrevi: é das elites que sai a maior ralé. Penso em banqueiros, administradores, muitos políticos portugueses. A certeza da impunidade serve-lhes para fazer crescer a conta bancária, inchar-lhes a vaidade, destruindo pelo caminho a paz e a riqueza dos portugueses. Também há jornalistas como José António Saraiva – este caso de tribunal passa-se com o ex-director do “Expresso” e do “Sol” -, homenzinho que costuma colocar-se no lugar mais panorâmico de arquitecto. É tragicómico, porque é um cidadão que pratica o Mal falando em nome do Bem (que pensa pertencer-lhe) e, invertendo tudo, sonha levantar o mundo pelas partes baixas. Na sua moralidade só descubro persistente e traumatizada imoralidade. Ideias serôdias como jovens homossexuais que encontra no elevador levarem ao descalabro da Civilização. Raciocínios abstrusos que lêem, como nas entranhas de pássaros, um Armagedão a cada esquina do mundo por culpa das calças de ganga rotas no joelho. No limite, transforma-se um mau cómico em criminoso. Trago provas do tribunal. Por uma vez, foi apanhado e condenado pelos seus crimes. Levante-se o arquitecto Saraiva. Estou na posição ingrata de dar nova publicidade a um livro que muito vendeu pelas devassas. Sem qualquer interesse público, a maioria. Até calúnias (impossíveis de provar ou desmentir) contra pessoas que já morreram, atirando sobre os filhos a mixórdia que Saraiva lançou ao ar.

Fui testemunha de um amigo no caso que moveu em conjunto com uma jornalista contra José António Saraiva e o livro “Eu e os Políticos”. Quem quiser que procure mais, ele escreveu os nomes. Muitos os replicaram em jornais, redes sociais. O livro mostrava ao que vinha com um buraco de fechadura na capa, e Saraiva falava em fotos antigas e privadas que estavam na casa desse meu amigo e que uma empregada descobrira durante as limpezas. Como se a intromissão na vida privada não fosse, desde logo, criminosa, Saraiva utilizava os dois ex-namorados para atacar uma terceira pessoa, o ex-primeiro-ministro Sócrates, anos depois de tudo se passar. Repetiria no tribunal que pretendia demonstrar que a jornalista (depois namorada de Sócrates) era muito “liberal” de costumes. O resultado foi a condenação de Saraiva em dois crimes de devassa da vida privada, num cúmulo jurídico de 5 400 euros de multa. Mais 15 mil euros de indemnização a cada um.

Por, de forma “cristalina e evidente”, ter devassado a vida íntima, humilhar os dois, de os prejudicar pessoal e profissionalmente, fazendo-os objecto de chacota nacional. Tudo fácil de prever, ainda por cima a quem se oferece a si mesmo barbas de profeta.

Eu só disse, sobre este meu amigo, a verdade: foi-lhe duro levantar-se de tanta maldade, mascarada de interesse público. Mas para que eu próprio visse como a insídia é traiçoeira, aconteceu-me o que julguei impensável ao fim de tantos anos de julgamentos. Ao passar do papel de testemunha de casos nos jornais a testemunha verdadeira em tribunal, caí também num erro tragicómico. Entrei na sala. O arguido Saraiva à minha esquerda, sentado.

– Conhece o arguido?, perguntou o juiz.

– Conheço.

– Conhece-o porquê?

– Conheço-o há cerca de 30 anos, como amigo.

Ligeiro silêncio no tribunal.

– E que relacionamento é que mantém com o mesmo?

– Um relacionamento regular, de nos encontrarmos, de falarmos, de telefonarmos.

– Mas é profissional, ou é de amizade, ou…?

– É de amizade.

Maior silêncio no tribunal.

– Conhece o assistente, A…

E ouço, da boca do juiz, o nome do meu amigo. Perco o trapézio, lá vou eu a cair no chão. Estivera a falar da pessoa errada, “cristalinamente evidente” de errada que era. Trocara arguido com queixoso logo a abrir!

– Peço desculpa, a primeira pergunta que fez era…

– Conhece o arguido?

– Peço desculpa, falava do assistente, não conheço o arguido!

Nem quero conhecer. Já lhe conheço que chegue.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)