Nascemos, vivemos e morremos. Mas vida é mais do que essa biologia. No hospital, perante a doença e o sofrimento, os crentes precisam da sua fé como de pão para a boca. Em tempos de covid-19, com cuidados redobrados e algumas limitações, os capelães dos Serviços de Assistência Espiritual e Religiosa continuam presentes para apoiar.
Vou morrer. Ajude-me”, disse o homem de 35 anos. Estava muito doente e deitado numa cama do Hospital de São João, no Porto, mas não se dirigia ao médico. Dirigia-se ao capelão. Numa altura em que sabia que a medicina não lhe podia prolongar a vida, queria conversar sobre o fim. Esse era o seu pedido de ajuda. “Acabou por morrer passado dois dias. Acredito que em paz”, recorda o padre Paulo Teixeira, responsável pelo Serviço de Assistência Espiritual e Religiosa (SAER) do Centro Hospitalar Universitário de São João.
O capelão lembra que quando chegou, em outubro de 2016, a primeira dificuldade foi bastante terrena: aprender a não se perder nos 16 quilómetros de corredores do hospital, com cerca de seis mil funcionários e mais de 1 100 camas. Ultrapassado esse obstáculo, começou a interiorizar a gigante dimensão humana do seu papel. E salienta um episódio, logo nos primeiros meses, que o ilustra bem: perto das oito da noite – duas horas após o horário habitual de saída -, decidiu fazer mais uma das visitas solicitadas. Entrou no quarto e sentou-se a escutar o paciente, até que ele lhe disse que estava cansado e tinha de descansar. Ao retirar-se, olhou para o relógio. Eram 23.30 horas. “O grande desafio é ter todo o tempo necessário para escutar as pessoas”, conclui.
As funções como capelão passam por algum trabalho estritamente religioso – como a missa diária, agora cancelada por causa da pandemia, a distribuição da comunhão, a santa unção, a confissão, os batismos, as exéquias fúnebres e os casamentos – mas Paulo Teixeira garante que essa é a parte mais pequena do seu trabalho. São as visitas e acompanhamento aos doentes, família e profissionais de saúde que constituem o grosso da atividade. “O trabalho estritamente religioso é uma minoria, 95% do meu tempo é trabalho de escuta.”
Agora, Paulo Teixeira percorre menos do que antes os corredores que já conhece como a palma da mão: encontra-se em teletrabalho por causa das novas normas relacionadas com a covid-19 e desloca-se ao hospital apenas para atender aos pedidos de assistência dos doentes. “As pessoas não-covid podem ser assistidas como sempre, mas com algumas adaptações. As pessoas com covid-19 só podem ser atendidas a seu pedido ou da família, para a celebração da Santa Unção, vulgo, últimos sacramentos, e tendo o aval último do enfermeiro-chefe de cada unidade. A visita deve ser muito bem avaliada, para que ninguém corra o risco de contagiar ou ser contagiado.”
Por detrás da máscara
Escutar é diferente de ouvir. Porque às vezes ouvimos, mas não escutamos. “A escuta que fazemos não é uma qualquer. É chamada escuta ativa ou empática”, especifica Fernando Sampaio, responsável pelo Serviço de Assistência Espiritual e Religiosa do Hospital de Santa Maria de Lisboa – onde é capelão há 25 anos -, coordenador Nacional das Capelanias Hospitalares e diretor da Pastoral da Saúde do Patriarcado de Lisboa. “Só com esta técnica é possível comunicar com a pessoa através do que ela sente. E isto é importante”, frisa o capelão. “A Assistência Espiritual e Religiosa não se caracteriza por eu ter um conjunto de coisas para oferecer, mas por entender as necessidades do doente e corresponder-lhes.”
Para isso, defende que não basta a boa vontade: é importante a profissionalização. “Os hospitais são cada vez mais complexos, os profissionais de saúde especializam-se cada vez mais e nós, os capelães, não podemos ter uma atitude amadora. É necessário ter boas ferramentas, nomeadamente científicas. Hoje há muita investigação acerca da espiritualidade e da religião que nos pode ajudar a assistir melhor os doentes.” Talvez por isso o padre, de 62 anos, tenha decidido fazer licenciatura e mestrado em Psicologia há várias décadas, quando ainda capelão do Instituto Português de Oncologia (IPO), em Lisboa. Define-se como “um psicólogo não praticante”, mas assegura que a formação lhe deu oportunidade de compreender melhor as pessoas e destrinçar o campo moral do mental.
Saber o que vai na alma dos doentes é agora um pouco mais difícil, com o uso de equipamentos de proteção individual. “É importante a linguagem paraverbal e com a máscara na cara torna-se mais difícil. Mas são as contingências com que todos temos de trabalhar agora.” A assistência no Santa Maria continua a ser feita “porque as necessidades espirituais e religiosas dos doentes não desapareceram com a covid-19”. Mas há regras apertadas a serem cumpridas para segurança de todos. “Como visitamos doentes em diferentes serviços, tanto covid como não-covid, temos de evitar ser um elemento de transmissão.”
Se com os doentes não-covid as visitas continuam mais ou menos como habitualmente, no caso dos doentes covid-19 tudo tem de ser mais controlado e em coordenação estreita com os profissionais de saúde do serviço. Mas são possíveis. “Se os doentes solicitam assistência, faço-a. Se querem só conversar ou fazer uma oração é possível por telefone, mas se for um sacramento, por exemplo a unção ou confissão, tenho de ir.” E não tem medo? “Receio temos todos. Medo não tenho. Cumprem-se as regras e vai-se devidamente protegido. Tal como fazem os outros profissionais nos hospitais, mas temos de continuar a fazer o nosso trabalho.”
Espiritualidade e inter-religiosidade
A assistência espiritual e religiosa nos hospitais e outros estabelecimentos do Serviço Nacional de Saúde (SNS) é regulada pelo Decreto-Lei n.º 253/2009. O diploma foca-se em dois pontos essenciais: garantir o direito à assistência religiosa a quem, por motivos de internamento, esteja impedido de o exercer e, por outro lado, o reconhecimento de que a espiritualidade e a religião são uma necessidade essencial, com efeitos relevantes na relação com o sofrimento e a doença.
De acordo com a Associação Nacional de Capelanias Hospitalares, há hoje 83 assistentes espirituais nos hospitais do SNS – alguns com horário completo, outros com contratações a tempo parcial que vão até às seis horas semanais, dependendo da dimensão dos hospitais. O Centro Hospitalar de São João, um dos maiores do país, tem um SAER composto por quatro assistentes espirituais, um assistente técnico e um operacional. Contam, além disso, com um grupo de mais de 50 voluntários que os ajudam em tudo o que há para fazer. “A nossa pastoral de presença, por exemplo, é constituída por um grupo de 32 colaboradores voluntários que passa junto de cada cama do hospital para informar os doentes dos seus direitos na área da espiritualidade e da religião”, esclarece Paulo Teixeira. É explicado aos doentes que o serviço é católico, mas que estabelece a ponte com todas as outras religiões. Neste momento, quase todos os voluntários foram dispensados por causa da covid-19. “A exceção é um grupo de 14 pessoas que, rotativamente, auxilia no transporte de roupa e outros haveres das famílias até junto das pessoas internadas.”
O serviço faz a ponte com outras confissões religiosas – das quais têm os contactos em base de dados -, mas o hospital tem tudo preparado para que qualquer padre, ministro ou pastor possa prestar assistência de forma simples. “À entrada do hospital basta selecionar no sistema a opção ‘Assistência Espiritual e Religiosa’, recebe-se uma senha prioritária e apresenta-se a identificação no balcão, informando que se foi chamado por alguém. Basta mencionar o serviço ou a enfermaria, não é necessário dar o nome do paciente, que tem direito à privacidade. O processo não demora mais de três minutos”, explica Paulo Teixeira. O sistema manteve-se mesmo durante a pandemia. De acordo com os dados do Serviço de Humanização, durante o ano passado houve assistência religiosa no hospital por parte das Testemunhas de Jeová, Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, Comunidade Islâmica portuguesa, Igreja Evangélica Metodista Portuguesa, Igreja Evangélica Luterana Alemã, Igreja Adventista do Sétimo Dia e Igreja Pentecostal Shalom, entre outras.
Apesar da abertura a outras religiões, há quem questione a presença católica permanente nos hospitais. Fernando Sampaio justifica-o com “a realidade sociológica portuguesa”, já que, atualmente, existem poucos doentes de outras religiões e lembra que “a assistência espiritual e religiosa é um direito dos doentes, não é um direito das igrejas”. De acordo como os Censos 2011, 81% da população portuguesa declara-se católica, sendo os sem religião 6,8% e os de outras religiões cerca de 3,9%.
Medicina também é compaixão
“Humanização” é um conceito central nos cuidados de saúde. Com pandemia ou sem ela. E o Centro Hospitalar de São João foi pioneiro ao criar, em 2008, o Serviço de Humanização, presidido pelo médico e professor catedrático Filipe Almeida, com o objetivo de dar um caráter tão institucional a esta preocupação como aquele que é dado às boas práticas científicas e deontológicas. Atender à espiritualidade é um dos compromissos do serviço. “Desenvolvemos mesmo uma cultura que fomente a noção de que os desafios da espiritualidade de cada doente são também da responsabilidade dos profissionais de saúde, não apenas do capelão ou outro assistente espiritual”, conta Filipe Almeida.
Há muitas décadas que a Organização Mundial de Saúde incluiu a dimensão espiritual no conceito multidimensional de saúde. “Espiritualidade” significa coisas diferentes para diferentes pessoas, mas pode ser definida, em traços simplistas, como a propensão humana para a busca de um sentido e significado para a vida que transcende o tangível – e que pode estar relacionado com a religião. Como lembra Filipe Almeida, cada doente, mesmo com patologias iguais, vive de forma diferente a doença e o sofrimento. “É sobretudo quando as respostas médicas deixam de se poder focar na cura – que é impossível – e passam a ter de se focar nos cuidados, que aumenta a importância que cada profissional deve dar à relação do doente com uma transcendência que não tem de ter um nome.”
Pediatra com subespecialidade em Cuidados Intensivos, o percurso profissional de Filipe Almeida levou-o a cuidar frequentemente de crianças na fronteira entre vida e a morte. E talvez seja por conhecer tão bem o ambiente tecnológico e científico das unidades de cuidados intensivos que defende que a medicina não se esgota aí. “A medicina não termina quando acaba a possibilidade de curar o doente. Essa visão leva-nos àquela frase que devia de ser proibida no léxico médico, o ‘já não há nada a fazer’. O homo technicus não tem mais nada a fazer, mas eu, como médico, sou muito mais do que isso porque o meu doente também é.”
Esta é a visão de uma medicina humanizada: aquela que se compromete com a pessoa e não com a doença. “Se o meu compromisso é apenas com a doença, deixo de ter espaço para o doente incurável. Se o meu compromisso é com o doente, ele mantém-se ou até se agiganta. A medicina não tem no seu arsenal terapêutico a oração ou a fé, mas tem outra dimensão muito importante: o exercício da compaixão.” Um exercício particularmente importante numa fase em que, como hoje, a morte acontece mais no hospital do que em casa.
Nascer e morrer
A doença e o sofrimento levantam muitas perguntas. Mas António Pedro Monteiro, Assistente Espiritual e Religioso no Hospital de Santa Marta e na Maternidade Alfredo da Costa, em Lisboa, garante que as dúvidas que dominam as conversas no hospital pouco têm que ver com a doença. Há dois grandes tópicos nas conversas com o padre. O primeiro, no caso dos crentes, é a relação com Deus. Há revolta e abundam ideias de um Deus castigador que distribui de forma pouco justa felicidade e sofrimento. “Tudo o que foi durante séculos uma retórica de medo vem parar ao hospital. Enquanto capelão, tudo o que posso fazer perante essa revolta é legitimá-la, para permitir que as pessoas destruam esta imagem de Deus e para depois a poderem reconstruir a partir dos escombros”, resume o capelão, de 36 anos, com o ar apaziguador que o caracteriza.
O outro tema é as relações com os outros, consigo e com a vida. E, quando essa é a questão, a pessoa precisa de se narrar e de discorrer sobre a sua biografia para encontrar paz. “Quando alguém diz ‘vou morrer’ rodeado de familiares e amigos, por vezes a primeira coisa que lhe dizem é: ‘não digas isso’ ou ‘para o ano estás melhor’, porque não sabem o que mais dizer e temos uma resistência inata ao sofrimento. Mas é um grande engano pensar que dizer coisas vai paliar: em muitas circunstâncias faz exatamente o contrário.”
Se houvesse um dicionário que pudesse traduzir esse “vou morrer”, diz o padre, à frente estariam expressões como “quero-vos”, “quero viver” e “adoro-vos”. “A grande dificuldade não é encontrar palavras, mas antes saber ficar calado para deixar a pessoa expressar-se. Fechar a porta a um momento desses é uma asneira porque, às vezes, não há mesmo ‘para o ano’, a pessoa tinha tanta coisa para dizer e não a deixaram.”
Apesar do Santa Marta e da MAC serem hospitais não-covid, as regras também mudaram. António passou a ter um dia fixo por semana para estar no hospital e, de resto, fica em casa, mas disponível 24 horas por dia. “Não posso fazer as visitas às enfermarias e serviços como habitualmente, mas posso dar resposta aos pedidos de assistência que surjam, e dou. Tenho de prover todas as chamadas que cheguem, seja de noite ou de dia. E, se houver um pedido agora, vou para o hospital. Já batizei por estes dias, já dei unções, comunhão e fiz simplesmente trabalho de escuta – tudo presencial.” Cumpre escrupulosamente todas as regras de segurança porque tem as suas próprias preocupações: vive em comunidade e três dos outros membros – por razões de idade ou doença prévia – apresentam um risco aumentado de doença grave se contraírem covid-19 e esse é um peso que não gostaria de ter na consciência.
Adaptou-se aos tempos: já antes colocava em formato de podcast as celebrações da missa na Capela de Santa Marta na sua página “Aquele que Habita os Céus Sorri”. Agora, e desde 14 de março, celebra a missa online. E como diminuíram as assistências em tempo de pandemia, colocou-se ao serviço de todos: qualquer pessoa pode solicitar assistência religiosa e espiritual através da sua página. É mais uma forma de estar ao serviço dos outros e de lutar contra a própria frustração. “O meu trabalho é estar com pessoas. E como o vírus proíbe que faça isso como dantes, é uma alternativa. Tenho acompanhado por telefone algumas médicas e enfermeiras na linha da frente.”
Antes fazia cerca de 50 assistências semanais presenciais, agora o número diminuiu porque muitas eram aquilo a que chamava as assistências “já agora”, as das pessoas que quando o identificavam como padre nos corredores, nas enfermarias ou junto à cama de algum doente, apesar de não o terem chamado, acabavam por aproveitar a oportunidade. Aquilo que não mudou foi o facto de uma percentagem significativa vir dos Cuidados Intensivos da Neonatologia da Maternidade Alfredo da Costa.
Aí a pergunta já não é ‘Porquê eu?’, mas antes “Porquê o meu filho?”. A densidade ética do problema é igual, sublinha o padre, mas, tudo o que é pequeno parte o coração todo. “O fim de vida de uma criança que tem dias é desconcertante. Não é expectável que eu possa trazer a paz àquele casal. A minha presença tenta ser apenas um aconchego”, observa o padre com humildade. Há muitos pais que querem batizar e há uma frase que o capelão faz questão de dizer sempre nestes batismos: “O Mundo, sem ti, não será a mesma coisa”.
Nos hospitais, habitualmente, os batismos só são feitos nessas situações, consideradas urgentes. Mas os “episódios de urgência” a que os SAER são submetidos têm outros contornos. Ao padre Fernando Sampaio, de Santa Maria, já aconteceu ter de saltar da cama às duas ou três de manhã para lhes dar resposta. “Pode ser um doente que vai ser operado de urgência e quer pôr as coisas espirituais em ordem, alguém que está perto da morte e quer confessar-se ou simplesmente conversar ou uma pessoa em fim de vida que quer casar.” Nessas situações, contextualiza, há uma série de processos e tempos de espera habituais que são ultrapassados: ministram-se os sacramentos primeiro e perguntam-se os dados depois. Porque aliviar o sofrimento deve ser sempre uma urgência.