Rui Cardoso Martins

Burlas e comida de cão

(Ilustração: João Vasco Correia)

Estava eu nisto (é o que dá abrir o jornal, sintonizar a rádio, ligar a TV) da “Grande Depressão” 2020, das quedas de PIB, dos apocalipses pandémicos – ninguém escapa ao “maior desafio das nossas vidas”, da “crise sem paralelo” no mundo inteiro. Uma Terra com um Vírus em cada esquina, Morte nos hospitais, Fome nas ruas, ou venceremos isto? Então, lembrei-me dela: a velha jurista burlona, como estará agora? Ainda roubará comida para cão numa mercearia do centro de Lisboa? Usará máscara protectora quando tenta enganar os vizinhos? Sairá alguma vez de casa? Porque a cascata de dívidas desta senhora começou muito antes da pandemia. Há semanas, no tribunal, esteve uma amiga minha que, por razões ficcionais, quis assistir a julgamentos comigo. Aprende-se muito, disse eu, repara: no centro está a juíza, à sua direita a procuradora da República, e o réu, ou o arguido, senta-se aqui mesmo, de costas para nós. Quer dizer que esta velhota é a arguida?, sussurrou a minha amiga. Se está ali é porque foi acusada de um crime, respondi. Era uma senhora de bom casaco e tinta cobre no cabelo, que disse ter nascido em Abril de 1945 (curioso, chegou ao mundo no fim do III Reich, quando o Exército Vermelho tomava Berlim).

– A senhora foi aqui chamada porque, conforme certamente se recorda, foi condenada neste tribunal por um crime de abuso de confiança a uma pena de dois anos, suspensa na sua execução por dois anos, subordinada à condição de a senhora pagar estes 4 080 euros em 24 prestações mensais de 170 euros. Apesar de já terem passado mais de dois anos, há aqui quantias que parece que não estão pagas. Gostava que me falasse sobre isto, se o desejar fazer.

– Eu tive, na altura, não tinha como… ficámos esperando que a autora nos comunicasse para onde podia fazer a transferência bancária, entretanto também tinha umas penhoras… logo que recebi o NIB não falhou nenhuma transferência.

– Então pelas suas contas, a senhora quanto é que já pagou?

– Só fazendo as contas.

– Quantas prestações já pagou de 170 euros?

– Acho que foi em 2018… 12, 14, 16…

– Porque é que só começou em 2018? Isso já eram os dois anos da suspensão. Nesta altura já devia estar a acabar!

Há, nos depoimentos dos burlões, um pouco de verdade, outro de mistificação. Se não podia pagar as dívidas porque tinha penhoras, não devia ter penhoras, resultado de outras dívidas… O discurso do arruinado pode ser ridículo, mas temperado de nobreza.

– Tive umas penhoras e de facto não tenho tido disponibilidades económicas para terminar os pagamentos.

– A senhora vive com quem?

– Vivo sozinha.

– Casa própria ou arrendada?

– Neste momento é uma situação muito estranha, porque alguém me vendeu a casa… não tenho renda… mas a pessoa enganou-me e fez-me uma venda…

– E a senhora tem filhos?

– Não tenho.

– A senhora estudou até quando? Quais são as suas habilitações literárias?

– Sou formada em Direito.

E numa voz sumida falou um pouco da vítima. A vizinha que emprestara dinheiro a uma doutora num dia e, no outro, afinal fora enganada por uma burlona. A velha jurista disse que o tribunal exigira que pagasse as prestações em segurança: a D. Filomena tinha outra pessoa em casa com acesso à conta. Pedira novo NIB.

– Quem é essa terceira pessoa?

– Uma senhora que vive lá em casa.

– A senhora conhece a situação física da D. Filomena?, perguntou a advogada de acusação.

– Na altura eu comunicava com ela, e a D. Filomena fisicamente estava bem. Agora não faço ideia. A última vez que toquei à campainha para fazer contas com ela, essa senhora estava lá em casa, não abriu a porta e ameaçou-me de chamar a polícia, portanto nunca mais vi a D. Filomena.

Foi quando a velha jurista se virou para trás que a minha amiga me deu ao ouvido uma informação extra-processo muito importante:

– Oh, é minha vizinha. Mora na minha rua. Rouba a comida dos cães na mercearia!

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)