Um martelo com muito sal e pimenta

Gonçalo Delgado/Global Imagens

Por Ana Tulha

Noite de 23, manjericos à janela, romaria nas ruas, brisa de sardinha assada a polvilhar a festa, sinfonia de martelos a compor a folia do santo mais portuense. A banda sonora típica da festa encerra uma tradição com mais de 50 anos, com muito sal e pimenta à mistura. Literalmente.

É que foi precisamente num saleiro/pimenteiro fora do comum, vislumbrado numa viagem ao estrangeiro, que Manuel António Boaventura foi buscar a inspiração para os martelinhos – mais tarde, martelinhos de São João. Sim, só mais tarde. Porque, quando o (falecido) empresário de Viana do Castelo o criou, em 1963, mais não era do que um simples brinquedo, a juntar a tantos outros vendidos na fábrica Estrela do Paraíso, em Rio Tinto.

Numa daquelas coincidências cósmicas que tudo mudam, nesse mesmo ano Boaventura teve a estudantada a bater-lhe à porta. Pediam-lhe um brinquedo bem barulhento, que pudesse ajudar à festa da Queima das Fitas. E que brinquedo podia ser mais barulhento do que o “saleiro” com um apito e um cabo que o empresário vianense tinha acabado de criar? O sucesso dos martelos na festa dos estudantes foi tal que depressa os comerciantes quiseram começar a vender esses objetos para a noite de São João.

Nos anos que se seguiram, foi ver as ruas do Porto pintadas de martelos em todos os cantos. Mas a história não havia de seguir o seu curso sem as politiquices se meterem ao barulho. No início dos anos 1970, alegando que o brinquedo contrariava a tradição, a Câmara Municipal do Porto avançou com uma queixa para o Governador Civil da cidade. Para mal dos pecados de Boaventura, a queixa vingou.

Não tardou até que o Governador Civil notificasse o empresário, dando-lhe conta de que estava proibido de vender os ruidosos martelinhos. Como se não bastasse, ainda mandou retirar todos os martelos que estavam à venda nas lojas comerciais. Mais: mandou aplicar multas – para quem desrespeitasse a proibição – no valor de 70 escudos (0,35 euros). Décadas depois, Manuel Marinho, neto do criador do martelo, haveria de comentar ao JN que se tratava de um valor “exorbitante”, tanto mais quanto o salário médio de então rondava os 30 escudos (0,15 euros).

Só que, por esta altura, já os portuenses olhavam para o martelinho como um símbolo incontornável do São João, pelo que fizeram ouvidos moucos à proibição. Enquanto isso, Boaventura prosseguia a penosa guerra na justiça. No último suspiro da ditadura, o empresário vianense perdeu a batalha na primeira e segunda instâncias. Mas ganharia a guerra em 1973, quando o Supremo Tribunal decretou que os martelinhos haveriam de ficar para sempre na lista de objetos obrigatórios do São João. Com uma pitada de sal e pimenta a condimentar a ligação.