Tourette: os tiques que viram a vida do avesso

O caso de Paulo, 25 anos, era tão grave que teve de ser submetido a cirurgia. A mãe, Carla, é o maior apoio. (Foto: Maria João Gala/Global Imagens)

Paulo Gonçalves, 25 anos, tinha sete quando os primeiros tiques motores começaram a aparecer. Uma careta que o fazia parecer “um coelhinho”, um esgar de boca, os olhos a piscar, a barriga a contrair. Depois, vieram os tiques vocais. Um “oh” repetido à exaustão e um pio semelhante ao de um mocho.

“Durante muito tempo, substituía uns tiques pelos outros”, conta. E a mãe, inquieta e incansável, num corrupio infrutífero. “Corri tudo o que era médico, no público e no privado, mas ninguém me sabia dizer o que ele tinha”, lembra Carla Moreira. Quase todos desvalorizaram o problema.

Foi já uns cinco anos depois do aparecimento dos primeiros tiques que, numa das muitas clínicas em que entrou, foi dar com um médico espanhol que identificou o problema. E não, não eram manias, nem sequer simples tiques nervosos, como outros médicos chegaram a augurar. Paulo tem síndrome de Tourette, uma perturbação neurológica crónica que afeta entre 0,3 e 1% da população mundial e que se manifesta através de tiques motores e fónicos. Para selar o diagnóstico, os tiques têm obrigatoriamente de persistir durante mais de um ano.

Só que, para Paulo, o diagnóstico foi apenas a ponta do icebergue. Apesar de ter sido prontamente medicado (com antipsicóticos sobretudo), a doença foi-se agravando. A adolescência, então, foi um inferno. “A dada altura, deixei de substituir um tique pelo outro. Só juntava novos tiques e não largava nenhum.” Era o ombro a rodar, o pescoço a andar para trás e para a frente, o pé a arrastar no chão. “A certa altura, parecia uma marioneta. Era isto o dia todo”, acrescenta a mãe.

“No cérebro, existem os circuitos dos gânglios da base, que estão ligados à aprendizagem e à ação motora. Numa pessoa normal, esse circuito é capaz de suprimir ações indesejadas. Num doente de Tourette não. Esse circuito está desinibido.” (Vasco Conceição, membro da Associação Portuguesa de Síndrome de Tourette)

Paulo lembra-se que “já nem sentia o cansaço”. Mas sentiu-se muitas vezes a desesperar. “Tantas vezes. Tenho uma coisa incontrolável. É uma luta comigo mesmo.” Para piorar, havia os vizinhos que, à custa dos “ohs” e dos pios de mocho, se queixavam de não conseguir dormir. E os olhares e os comentários na rua. Pior, bem pior, foi o que os tiques lhe fizeram ao corpo. “Como mandava o pescoço para trás e para a frente com muita violência, o disco cervical estava a ficar muito desgastado. Os médicos chegaram a avisar-nos que, a continuar assim, corria o risco de ficar paraplégico.”

No meio do pesadelo, tiveram a sorte de Carla já ter lido na Internet sobre uma operação que faziam nos Estados Unidos aos doentes de Tourette. E de terem encontrado no Hospital Egas Moniz, em Lisboa, uma equipa que os encorajou a avançar com a cirurgia, que consiste em colocar uma espécie de pacemaker cerebral. “Era uma operação de alto risco, mas o caso do Paulo era extremo. Esteve quase 12 horas aberto e ao fim de sete um dos médicos foi dizer-me que as coisas não estavam a correr bem. Mas não desistiram. Quando, depois da operação, o vi a caminhar para mim, quase sem tiques, desatei a chorar”, recorda Carla, as lágrimas a ameaçarem voltar.

Foto: Maria João Gala/Global Imagens

Dois anos volvidos, os tiques, bem mais ligeiros, já quase passam despercebidos. Mas os problemas não desapareceram. Desde logo, porque os danos provocados por anos a fio de movimentos bruscos resistem. “Os médicos já disseram ao Paulo que tem uma coluna de um senhor de 70 anos, com 50 anos de trabalhos forçados em cima.” Há mais.

Para valer ao filho, Carla viu-se obrigada a pedir empréstimos e a contrair dívidas. “Financeiramente tem sido muito difícil. Passei anos sem apoios. Ia à Segurança Social com relatórios médicos e diziam-me sempre que Tourette não fazia parte do protocolo. Só pouco antes da operação é que consegui que dessem ao Paulo um certificado de incapacidade vitalícia de 60% e que começassem a pagar uma bonificação.”

Depois, ainda há as dificuldades que o filho sente para arranjar trabalho. “Como também tem défice de atenção [em quase 90% dos casos, a síndrome de Tourette surge associada a outro tipo de problemas, as chamadas comorbilidades], o Paulo tem mais dificuldade em fazer tarefas diferentes ao mesmo tempo. Muitas vezes não passa sequer o mês de experiência”, lamenta Carla, dando graças por a empresa em que Paulo está atualmente se ter preocupado em compreender o problema do filho e em tentar ajudar.

O nariz no chão e um dedo quase necrótico

Parte do problema reside no facto de esta continuar a ser, para a generalidade da população, uma doença tabu, de contornos nebulosos. Vasco Conceição, que está a fazer doutoramento em síndrome de Tourette e perturbação obsessivo-compulsiva, ajuda a desconstruir. “No cérebro, existem os circuitos dos gânglios da base, que estão ligados à aprendizagem e à ação motora. Numa pessoa normal, esse circuito é capaz de suprimir ações indesejadas. Num doente de Tourette não. Esse circuito está desinibido.”

Vasco é um dos membros da Associação Portuguesa de Síndrome de Tourette, criada e presidida por Gisela Santos, mãe de quatro filhos, dois deles com Tourette (Afonso, 12 anos, e Xavier, com seis). Sentado no sofá de casa, em Braga, Afonso, o mais acossado pelos tiques, fala deles na primeira pessoa, com uma naturalidade arrebatadora. “Tenho um em que entrelaço os dedos da mão esquerda, outro no pé, em que raspo os dedos um no outro. É como se sentisse uma impressão grande e tivesse de fazer estas coisas para deixar de sentir”, vai contando.

À medida que perde a vergonha, os tiques ficam mais percetíveis. Ninguém se incomoda. Na casa de Gisela, há muito que a síndrome deixou de ser um bicho de sete cabeças. Para lá da medicação, Afonso e Xavier fazem terapia semanal no PIN, o Centro para as Perturbações do Desenvolvimento dirigido pelo neuropediatra Nuno Lobo Antunes.

Mas até chegar aqui o calvário foi longo. Desde logo porque, também neste caso, a desvalorização foi recorrente. Ou era o mimo, ou eram os ciúmes do irmão, ou eram o desleixo e a desmotivação, por ter um QI acima da média. “Tudo tinha uma explicação. Uma médica chegou a dizer-me que quem precisava de um ansiolítico era a mãe”, salienta Gisela Santos.

Afonso tardou a ser diagnosticado. A mãe, Gisela, fundou a Associação Portuguesa de Síndrome de Tourette. (Foto: Maria João Gala/Global Imagens)

Entretanto, os tiques iam piorando. Desde estar permanentemente a puxar a cadeira para trás para pôr um joelho no chão ao dedo do pé que esteve perto da necrose, de tanto o raspar no do lado. “Depois teve uma fase em que se deitava para pôr o nariz no chão, onde quer que fosse. Era como se o cérebro o mandasse pôr o nariz em determinados sítios e ele tivesse de o fazer. Ele dizia-me muitas vezes: ‘Porque é que eu faço isto, mãe? Eu não quero fazer.'” Entretanto, começou também a dizer frases sem nexo e palavras soltas (ainda hoje diz “life” [vida] de quando em vez).

A escola foi outro problema. A caderneta estava sempre cheia de recados, por causa de supostos comportamentos provocatórios (as caretas e os sons que fazia sem querer). A professora dizia “o Afonso é um doce mas tem um comportamento que nos dá cabo da paciência” e até os outros pais mandavam recados. “Quando ia lá, havia mães que se queixavam entre elas, mas alto, para eu ouvir, dos meninos que perturbavam as aulas. Eu já nem queria cruzar-me com ninguém”, desabafa Gisela. Por isso, no 2.º ano, mudou o filho para um colégio privado, onde “passou a ser compreendido por todos”, mesmo antes de o diagnóstico estar fechado.

O veredicto chegou no terceiro período do segundo ano: síndrome de Tourette, acrescida de perturbação obsessivo-compulsiva e transtorno de ansiedade (as tais comorbilidades). “Quando a médica nos disse o que era, o meu marido ficou a olhar. Eu por acaso já tinha ouvido falar no ‘Dr. House’ [série americana de televisão]. Só que nesse caso, o paciente tinha coprolalia [necessidade de dizer palavrões ou fazer obscenidades]. Então a minha reação foi: ‘Mas o meu filho não diz palavrões!'”.

Palavrões e obscenidades

Apesar de a síndrome de Tourette ser frequentemente associada aos palavrões, só 10% dos doentes que a têm manifestam este traço da doença. Laura Nunes, dez anos, da Golegã, faz parte desses 10%. Mesmo que, por agora, a coprolalia esteja controlada. “Mas há um ano, por exemplo, estava muito mal. Chegava a dizer centenas de asneiras por dia”, recorda a mãe, Vera Bileu. A fase dos impropérios durou uns meses, com muita incompreensão alheia pelo meio.

De vez em quando, Vera dava por ela (ela, a mãe) a chorar baba e ranho. “A Laura dizia todo o tipo de asneiras, em português e em inglês. E fazia gestos obscenos. As pessoas ficavam a olhar, era constrangedor. Nós tentávamos distraí-la falando de outras coisas, mas nem sempre era fácil. Uma vez, a professora da Laura, que sempre foi excecional, chamou-a para fazer uma massagem e ela esteve o tempo todo a insultá-la.”

Vera (a mãe), Nuno (o pai) e Laura (a filha) enfrentam juntos a Tourette há mais de dois anos. O pior parece já ter passado. (Foto: Maria João Gala/Global Imagens)

A coprolalia foi apenas uma das fases da Tourette de Laura. Antes disso, bem antes, tudo começou com um soluço persistente, que teimava em não passar. Depois veio o ronco. Entretanto, sem dar conta, começou a tirar as mãos do guiador da bicicleta. “Nós ralhávamos e ela dizia que não estava a fazer nada”, sublinha o pai, Nuno Nunes. A seguir, vieram os tiques no nariz e na garganta. E os médicos sem saber o que ela tinha. No Hospital Dona Estefânia, diagnosticaram tiques hereditários e deram-lhe medicação tão forte que passou um verão “quase todo a dormir”. Foi só quando recorreram ao PIN, já em 2017, que o diagnóstico de Tourette chegou.

Encostada ao pai, doçura a rebentar pelas costuras, Laura vai olhando, tão sorridente quanto tímida, um leve soluço a escapar-lhe de quando em vez. Mas não fala sobre a síndrome. “Nunca fala. Mesmo a psicóloga tem de falar com ela como se estivesse a referir-se a outra pessoa”, explicam os pais. Desde que a doença foi diagnosticada, há dois anos, a vida de Laura, Vera e Nuno esteve longe de ser um mar de rosas. Laura teve a fase em que se atirava para o chão, a fase dos gritos, a tal fase dos insultos. E os pais incontáveis fases de desespero, lágrimas e noites mal dormidas. Mas, agora, com medicação mais adequada e terapia comportamental, a Tourette parece ter abrandado.

“Os primeiros sintomas costumam aparecer por volta dos cinco, seis anos, nunca depois dos 18. Depois há um grande aumento de severidade, com ponto máximo a surgir, em média, por volta dos 11 anos. Nesta fase, em vários casos, os doentes têm diversos tiques por minuto, o que acaba por ser uma condição completamente disruptiva para a qualidade de vida. Na idade adulta, perto de 50% dos doentes acaba por ficar com uma severidade desprezável”, elucida Vasco Conceição, investigador no Instituto de Medicina Molecular e membro da Associação Portuguesa de Síndrome de Tourette (APST).

A associação vive apenas das quotas dos associados e, por isso, funciona, em grande medida, em regime pro bono. Desde que foi fundada, no final de 2017, chegaram à APST pedidos de mais de 40 pessoas. Mas Gisela Santos, presidente, não tem dúvidas de que a maior parte do trabalho está por fazer. “Acreditamos que existem imensos casos não diagnosticados. Até porque cada vez mais a tendência é aparecerem adultos a pedir ajuda.