O ator que um dia quis ser astronauta

Foto: Gerardo Santos/Global imagens

Texto de Cláudia Pinto

Sempre quis ser ator ou astronauta, mas, “como a ciência ainda não estava tão desenvolvida como a imaginação”, optou pela primeira. Ivo Canelas tem 45 anos, nasceu em Lisboa e é no Porto, no Hard Club, que estará durante esta semana, levando à cena o monólogo “Todas as Coisas Maravilhosas”. Baseada num texto escrito pelo dramaturgo inglês Duncan Macmillan, estreada com enorme sucesso no Fringe Festival, em Edimburgo, na Escócia, e apresentada em diversos países, cá a peça foi vista, em Lisboa, em janeiro, por mais de 2 500 pessoas. O sucesso foi tal que levou à necessidade de criar sessões extra.

O convite a Ivo partiu de Hugo Nóbrega, diretor da H2N Phenomena Makers, produtora de espetáculos. O ator confessa que mal leu o texto se sentiu “profundamente tocado”, acabando por traduzir e adaptar o original em conjunto com a poetisa e tradutora Margarida Vale do Gato. E nem o facto de não fazer um monólogo desde os tempos de escola o demoveu.

Durante hora e meia em cena, o público é convidado a participar. “Há momentos espantosos de interação, é tudo muito coletivo. Para mim, é profundamente tocante, pois há uma espécie de confiança, de generosidade e, ao mesmo tempo, de crença desmedida em todo o espetáculo”, diz o ator. Houve até quem chegasse a pensar tratar-se de uma apresentação autobiográfica, de tão real que é a representação. Ivo Canelas aproveita todos os momentos e entrevistas para realçar a beleza do texto e nomear o autor.

Referindo-se ao privilégio que sente ao partilhar o monólogo com quem vai assistir, recorda os instantes “geniais e arrepiantes” vividos na primeira temporada. “É muito agradável quando alguém te diz que o tocaste de alguma forma e que fizeste a diferença naquele dia. Recebi algumas vezes esse feedback”, congratula-se.

Ivo Canelas não esconde que mantém a voz interior da infância e que não perdeu características típicas de criança. Talvez por isso consiga recuar no tempo e representar tão bem um miúdo, de sete anos, que viu a mãe passar por uma depressão e tentar o suicídio. “Continuo a achar que a minha voz interior não engrossou. Sinto que as minhas dúvidas são as mesmas, que o adulto que sou hoje não tem tanto tempo para comer aquele gelado, mas que a vontade é igual.”

É uma peça inspiradora, que mistura humor e emoção, e que se apresenta como uma espécie de hino à vida, onde uma criança vai começando a escrever uma lista de razões, de coisas maravilhosas, na tentativa de ajudar a mãe a recuperar de uma depressão. E essa lista vai crescendo à medida que o espetáculo também evolui. No começo, o monólogo tinha a duração de uma hora, mas rapidamente se percebeu que tinha os ingredientes necessários para chegar até à hora e meia. Ou mais.

Há quem tenha voltado a assistir, há quem chore, há quem sorria, há quem solte gargalhadas. Mérito do ator, que envolve a plateia numa espécie de abraço. De repente, há quem se sinta a participar numa espécie de terapia de grupo, em que o improviso acontece e nenhuma sessão é igual à anterior. “Recebi reações incríveis. Nas sessões de Lisboa, aconteceram micro conversas que incluíram trocas de olhares cheios de frases, foi mesmo muito forte”, partilha o ator, revelando alguma expectativa relativamente ao público que vai encontrar no norte do país.

Doença com impacto mundial

Segundo dados da Organização Mundial da Saúde, a depressão tem vindo a afetar cada vez mais pessoas e a previsão para os próximos anos não é animadora. “As perturbações por depressão são a terceira causa de carga global de doença (primeira nos países desenvolvidos), estando previsto que passem a ser a primeira, a nível mundial, em 2030, com agravamento provável das taxas correlacionadas de suicídio e parassuicídio”, avança a Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental (SPPSM). Mais de 300 milhões de pessoas sofrem de depressão em todo o Mundo e Portugal é o quinto país da União Europeia com maior prevalência de problemas de saúde mental, segundo o relatório “Health at a Glance 2018” da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE).

As estimativas apresentam ainda a depressão como uma doença que afeta 21 milhões de pessoas na Europa.
Não foi imediatamente claro para Ivo Canelas e Hugo Nóbrega que a promoção do monólogo teria de passar pela saúde mental, mas também não foi preciso muito tempo até que se percebesse que esse seria claramente o foco.

“Não havia que ter medo, apesar de ser um tema sensível”, assegura Ivo. Nos primeiros ensaios abertos, rapidamente se chegou à conclusão que as pessoas iam ver o espetáculo pela temática abordada. “De repente, todo o feedback era sobre a depressão, o suicídio ou como nos posicionávamos no meio disso”, frisa Ivo Canelas, que gosta que lhe seja dada a oportunidade de descobrir as peças que representa, conforme as vai vivenciando.“Era ponto assente a minha relação empática com o texto e acreditava que algumas pessoas pudessem ter uma reação semelhante, independentemente do seu passado e das suas próprias experiências de vida.”

Não raras vezes, após as sessões da primeira temporada, Ivo Canelas recebia dezenas de mensagens de pessoas que partilhavam o quanto se sentiram identificadas e tocadas pela peça, na qual encontraram “o lado catártico que as obrigou a ver as várias personagens e os vários pontos de vista daquela situação, ou seja, não só de quem pensou ou tentou suicidar-se, mas também o de todos os que estão à volta, que acabam por fazer perguntas e até sentir uma certa culpa”. Ivo não esconde a emoção que sentiu ao receber e ler esses testemunhos. “Tento ver essa partilha como um elogio.”

De forma a preparar-se melhor e a desenvolver um maior conhecimento na área de saúde mental, o ator procurou ajuda na associação SOS Voz Amiga, tendo ainda convidado profissionais e alunos do ISPA (Instituto Universitário de Ciências Psicológicas, Sociais e da Vida) para os ensaios abertos.

Uma peça geracional, mas transversal

Com um cenário relativamente simples, o ator apresenta-se ao centro e o público é distribuído sem lugares marcados. Segue-se uma espécie de conversa que, inevitavelmente, leva toda a gente a refletir. Estaremos suficientemente atentos ao nosso redor e a “todas as coisas maravilhosas da vida”? É possível descobrir pormenores, momentos, pequenos prazeres que nos agarrem aos dias, mesmo quando nos sentimos no limite das forças? Pode uma lista de coisas maravilhosas fazer a diferença numa depressão?

E a típica inocência de um menino de sete anos, que toda a vida lidou com a doença da mãe, continuará enquanto for adulto? E que impacto isso terá nas suas próprias vivências? Que crises existenciais partilhamos enquanto seres humanos?

A música também faz parte do monólogo. Ao longo da peça, são revisitados temas intemporais, interpretados, entre outros, por Elis Regina e Jorge Palma, e tocados em discos de vinil. Nessa conversa intimista, abordam-se temas como a solidão, a família, o amor, o desamor, a ausência, a culpa, a felicidade, a tristeza. Mas também se fala de guerras de água, de comer a sobremesa antes do prato principal, de bolachas molhadas no leite, das quedas de bicicleta e do bom que é, quando somos crianças, ver televisão depois da hora de ir para a cama.

Após a temporada no Porto, no Hard Club, que arranca amanhã, dia 20, e termina no dia 27 de maio – sessões de segunda a sábado às 21 horas e a de domingo às 18h00 –, “Todas as Coisas Maravilhosas” volta a Lisboa, para mais 17 sessões, entre 27 de setembro e 13 de outubro, novamente no Estúdio Time Out. “Venham ver, pais, avós, filhos, amigos, crianças a partir dos doze anos”, convida Ivo Canelas, garantindo que a peça é geracional, mas com uma temática transversal a quase todas as idades. No final, não se espante se sair com imensa vontade de comer um gelado. Ou mais.