O admirável novo mundo dos tecidos

Os resíduos entranham-se nas roupas. Casca de banana, membrana de ovo, polpa de madeira, hortelã-pimenta. Tudo se aproveita em nome de um planeta melhor.

Os processos de produção já não são chapa-quatro, os métodos de fabrico alargam a visão tradicional e as inovações transformam a roupa. Os tecidos não são o que eram. A moda está atenta, arrisca, inova. E os desperdícios ressuscitam em novos panos que embelezam o corpo.

O glamour da moda também está nesse ADN miudinho dos tecidos nacionais. A Tintex trabalha em várias frentes na inovação dos tecidos a partir de Vila Nova de Cerveira. Estuda soluções têxteis inteligentes, processos sustentáveis, criou um método que incorpora algas numa fibra de celulose natural, deu vida a uma nova geração de algodão que respeita a essência da economia circular.

Surgiu como tinturaria, hoje é líder mundial em malhas Lyocell, uma fibra feita a partir da polpa da madeira, e o seu sistema de coloração à base de extratos vegetais, para tingir tecidos sem corantes químicos, tem dado que falar e deu origem à marca Colorau. O projeto, que usa hortelã-pimenta e tomilho, está na segunda fase, batizada de Picasso.

“Estamos a investigar outros tipos de extratos e de cores”, adianta Ana Silva, responsável do Departamento de Sustentabilidade da Tintex. A empresa tem outro projeto. “Trata-se da incorporação de resíduos vegetais na criação do couro vegano.” O serrim, desperdício da madeira, e resíduos de café estão a ser testados nesse couro não-animal.

Há mais desperdícios em análise, como cascas de amêndoa e de arroz, e os ensaios prosseguem nesta substituição de materiais sintéticos por alternativas naturais sem comprometer o visual e o desempenho. O uso de pigmentos naturais teve sucesso, o uso de biopolímeros com resíduos também, e o couro vegano poderá ser comercializado pela Tintex a partir de julho de 2020.

A Tintex está a procurar incorporar resíduos vegetais na criação do couro vegano.

A empresa não pára de pensar. Anda a matutar numa camisola que se adapte às condições do tempo e à temperatura do corpo, com uma estrutura que tanto abra para arrefecer, como compacte para aquecer. A ideia é criar malhas flexíveis na vertical e na horizontal. “Temos um projeto para a criação de têxteis que respondam a estímulos”, diz Ana Silva, que chama à conversa as penas dos patos que são impermeáveis.

“A nossa ideia é trazer esses efeitos da natureza para o têxtil.” Criar novas fibras, perceber comportamentos da natureza, reaproveitar resíduos. “A inovação na indústria têxtil vai ser a única forma de sobreviver. Temos de produzir de forma responsável e a inovação é, sem dúvida, um fator crucial”, realça.

Um pouco mais a sul, a Scoop – Scorecode Têxteis, em Vila Nova de Famalicão, fabrica vestuário. É uma empresa de confeção têxtil de vestuário técnico, com uma equipa focada na forma de inovar e nas sinergias entre indústria, meio académico e centros científicos. “A inovação é a procura de uma solução para um problema”, refere Mafalda Pinto, administradora da empresa.

A frase encaixa no casaco tecnológico 100% português com iluminação inteligente e fibras óticas. O problema era manter a segurança de peões, peregrinos, trabalhadores, ciclistas, desportistas, sobretudo em ambientes noturnos. A solução é o casaco que nasce de uma parceria que envolveu a empresa tecnológica Lapa e a startup VIME, que tem a inovação na base da ação. E assim nasceu Musgo, a primeira marca própria da Scoop.

Um casaco luminoso com um tecido feito à base de fibras de carbono obtidas a partir de cascas de coco recicladas. Tem fibra ótica, bateria leve com autonomia para dez horas, material antirradiação no bolso esquerdo. O Musgo dispõe de uma aplicação para utilização em smartphone que permite escolher e mudar a cor. Tem ainda uma cauda rebatível para evitar a sujidade, bandas de silicone nos ombros para aumentar a aderência de mochilas, bolsos ventilados com fechos bidirecionais para regular a temperatura e um painel respirável cortado a laser.

“É um casamento quase perfeito de sustentabilidade e tecnologia, com um produto que se torna único no mercado.” Uma peça de vestuário que sinaliza a travagem de um ciclista e avisa se um trabalhador ultrapassou um perímetro de segurança. Este ano, foi considerado o melhor produto no iTechStyle Awards, os prémios que destacam os melhores tecidos, produtos e acessórios técnicos e inovadores. O Musgo já está no mercado dinamarquês. Em Portugal será vendido online, diretamente ao consumidor, e a ideia é que chegue aos países nórdicos, a sítios onde as horas de sol são mais reduzidas.

Daniel Mota Pinto, da Scoop, empresa famalicense com uma equipa focada na forma de inovar e nas sinergias entre indústria, meio académico e centros científicos. (Foto: Miguel Pereira/Global Imagens)

Este mês, a Scoop voltou a surpreender com o Mystic Jacket, o casaco preparado para as expedições à Antártida da Mystic Cruises. O blusão resiste a temperaturas extremamente baixas, tem o mesmo sistema de luzes do Musgo, sistema de geotracking e sistema NFC (Near Field Communication), que permite a troca de informações sem fios, e uma antena na manga para abrir portas dos quartos dos navios e fazer pagamentos multibanco.

A inovação faz parte da maneira de ser da Scoop. Mafalda Pinto acredita que é possível verter o que está no papel em peças que espantem e juntar forças para criar em conjunto. “O nosso país tem gente com muito talento e o talento é a matéria-prima da inovação.”

Cortiça e fécula de batata

Mónica Gonçalves já tem um “Design Award” italiano, na categoria de tecidos e design de moda, e já ganhou o concurso EcoFriendly do Portugal Fashion com o seu fio de cortiça. Reaproveita recursos que iriam parar ao caixote do lixo. Neste momento, anda focada no desenvolvimento de novos tecidos com membrana de ovo, sabão, casca de banana e leite. Os testes estão feitos, os protótipos começam a surgir.

“Devagarinho, vamos conquistando o mercado com uma parte mais criativa”, afirma a designer, que criou a Casa Grigi, em Lisboa. Verificou que a membrana do ovo se comporta de forma semelhante à pele humana. É o pulmão do ovo, membrana elástica que protege o embrião da luz solar. Tirou a casca, colocou o ovo em vinagre, ficou com a membrana e percebeu que havia ali uma postura de elastano.

“Numa ótica de produção, quando os ovos são deitados fora, porque têm oscilações de tamanho ou porque a casca está suja e não podem entrar na circulação comercial, a membrana é a parte do ovo mais poluente”, observa. E a indústria tem dificuldades em escoar esse excedente. Por isso, quer reunir as características dessa membrana num tecido 100% elástico, térmico e natural de uma ponta à outra.

O mesmo se passa com o leite. E quanto mais coagulado melhor, porque a ideia é, revela, “transformá-lo num biopolímero”. A casca de banana pode ser transformada num tecido semelhante ao couro sem sacrificar animais, “como se fosse um polímero e ligante dela mesma”. A casca é moída e o potássio que se liberta nesse processo ajuda a unir todos os elementos e a dar uma outra vida a um resto alimentar. O sabão também tem potencialidades. “Ativa a fibra para incorporar resíduos alimentares e vegetais”, salienta.

Há oito anos, Mónica Gonçalves, da Casa Grigi, conseguiu condensar num único fio as características da cortiça.

Há oito anos, conseguiu condensar num único fio as características da cortiça: leveza, capacidade térmica, elasticidade, resistência, impermeabilidade e a memória de esticar e voltar ao estado inicial. Deu várias voltas até perceber como transformar a cortiça num fio, tapando os poros da casca do sobreiro. A solução estava na fécula de batata que funciona como uma cola que preenche esses buracos. Depois de várias tentativas, às quatro de uma madrugada, acordou a casa inteira com a descoberta do fio de cortiça.

O primeiro protótipo foi um blêizer numa altura em que não se falava muito em economia circular. Seguiram-se outras peças que podem ir à máquina a qualquer temperatura e ser passadas a ferro. O fio de cortiça foi o abrir de outras portas para a inovação e para mostrar ao Mundo que a casca do sobreiro também tem lugar na moda.

A cortiça entrou na moda e não vai sair. No início do mês, o Cork-a-Tex, um fio inovador que incorpora 20% de cortiça e 80% de algodão, venceu o Prémio de Sustentabilidade dos iTechStyle, uma das categorias mais importantes da distinção no universo da indústria têxtil nacional. É o material mais recente da Têxteis Penedo, de Guimarães, que envolveu a empresa corticeira Sedacor, o Citeve – Centro Tecnológico das Indústrias Têxtil e do Vestuário e a Faculdade de Engenharia do Porto.

“É um fio de fibras naturais com revestimento de cortiça e é já um sucesso pelo interesse que tem despertado em cadeias nacionais e internacionais de moda, decoração e têxteis-lar”, enfatiza Agostinho Afonso, administrador da Têxteis Penedo. A textura natural da cortiça, o toque suave e morno e a resistência à fricção são virtudes que não passam despercebidas, foram bem espremidas e fizeram a diferença no fio que nasce de “um desperdício do processo corticeiro”.

O estilista Júlio Torcato está a desenhar a coleção primavera/verão 2020, um mix entre o casual e o clássico, e já escolheu os materiais. Lã sustentável, algodão orgânico e poliéster feito a partir de resíduos de plásticos retirados do mar. “É uma nova etapa da marca com materiais mais tecnológicos e reciclados”, sublinha.

Num dos últimos desfiles em que participou, alertou para os animais em vias de extinção e usou materiais reciclados. “A moda também tem de ter esse papel, de conseguir passar a mensagem de contribuir para um mundo melhor.” Os tecidos entram nesta história, são veículos “em relação à sustentabilidade, à honestidade do produto”.

O estilista Júlio Torcato está a desenhar a coleção primavera/verão 2020 com materiais feitos a partir de resíduos de plásticos retirados do mar. (Foto: Pedro Granadeiro/Global Imagens)

A inovação é a essência e o desígnio do setor têxtil. A razão de ser. A forma de se diferenciar e de se manter competitivo. “As empresas deverão estar preparadas para novas formas de interação com os consumidores finais, nomeadamente através das tecnologias digitais”, defende José Morgado, diretor do Departamento de Tecnologia e Engenharia do Citeve – Centro Tecnológico das Indústrias Têxtil e do Vestuário de Portugal.

A moda é uma segunda pele, a roupa a primeira camada de proteção. E o que vai mudar nos tecidos que vestimos? “Hoje fala-se muito de ‘têxteis inteligentes’ ou ‘smart’, mas a curto prazo vamos ter de falar em têxteis com vida que conseguirão captar informação e, de forma inteligente, responder a estímulos, reagindo, moldando-se e adaptando-se às novas necessidades”, responde José Morgado. São os têxteis com vida. Com tantas vidas quantas a moda quiser.