Cristina Tavares: vida de cortiça, coragem de ferro

Texto de Sara Dias Oliveira | Fotos de André Gouveia/Global Imagens

Quando concluiu o 12.º ano, há cerca de seis anos em horário pós-laboral, já depois dos 40 e ao abrigo do processo de reconhecimento, validação e certificação de competências, escreveu na sua história de vida que era uma “mulher lutadora”.

“Sempre me descrevi como uma lutadora, sempre tentei alcançar os meus objetivos.” Cristina Tavares acaba de fazer 48 anos. É operária corticeira desde os 13 e, neste momento, está sem emprego, despedida pela segunda vez pela empresa que tem às costas um processo de assédio moral e uma multa de 31 mil euros.

Cristina só quer regressar ao trabalho e ocupar a sua função, que não é carregar e descarregar os mesmos sacos de rolhas mais de 30 vezes por dia. “Não queria que isto estivesse a acontecer, preferia estar no meu posto de trabalho”, confessa-nos, numa manhã fria de chuva miudinha.

Cabelos escuros compridos e ondulados, olhos grandes e abertos, mãos que se vão aquecendo uma à outra, pés que não tardam a gelar. Cristina não é de frases compridas. Diz o que pensa sem rodeios, não estica o discurso, e repete o que tem dito nos últimos dias, nos últimos meses. Quer trabalhar na corticeira de Paços de Brandão (Santa Maria da Feira) que a despediu. “É o meu único sustento, tenho de preservar o meu posto de trabalho.”

Cristina, de corpo franzino, pouco mais de 50 quilos, menos seis que perdeu nos últimos meses, não desiste. Nunca lhe passou pela cabeça a dimensão que o seu caso ganhou no país. Tornou-se um exemplo do que o sindicalismo tem de mais solidário. É o rosto de uma luta pelo direito ao trabalho, contra os despedimentos ilegais.

“Deve haver mais gente a passar pelo mesmo e não tem coragem de o dizer”

“Deve haver mais gente a passar pelo mesmo e não tem coragem de o dizer.” Tem recebido abraços, palavras de apreço e de incentivo, apoio do sindicato onde se inscreveu há dez anos. “Dizem-me que sou uma lutadora.” Tal como escreveu na sua história de vida.

Anda sempre com um terço na carteira, guardado dentro de uma caixa redonda de plástico transparente, benzido em Fátima, oferecido pela mãe que lhe diz para continuar a lutar. Lutar de cabeça erguida, sem baixar os braços. Cristina é uma mulher de fé, acredita em Deus, vai à missa quando acha que deve ir, reza o terço quando está sozinha, faz promessas que cumpre de joelhos no chão no Santuário de Fátima. “Peço-lhe ajuda e Ele tem sido meu amigo, sei que Deus está a ouvir-me.”

Cristina era uma menina alegre, jogava à macaca e ao elástico no recreio da escola, e queria ser empregada de escritório como a tia-madrinha, irmã da mãe. Teve apenas uma boneca num Natal, tal como a irmã, de quem faz diferença de apenas um ano na idade, quando andava na escola primária. Era de plástico, vinha dentro de um cesto, não lhe deu um nome, mas fazia-lhe roupas que ia costurando com o pé no pedal da máquina da mãe.

Gostava de estudar, era a melhor aluna de Educação Física no ciclo preparatório, no 5.º e 6.º anos. Conseguia dar uma cambalhota no trampolim e cair direitinha, com os pés no chão, cabeça no ar. Um dia, teve de arrumar os livros. “O meu pai não deixou que continuasse a estudar”, recorda.

Havia muitas bocas para sustentar, tinha de aprender costura como deve ser, tal como a mãe e as raparigas da sua idade. Andava às tardes numa senhora com linhas nas mãos. Ainda lhe passou pela cabeça repetir o 6.º ano só para continuar na escola, só que a mãe avisou-a que o pai não iria nessa conversa. Decidiu acabar o ciclo e seguir as indicações da família.

É a mais nova de seis irmãos, quatro rapazes e duas raparigas. A avó chegou a ser encarregada numa fábrica de cortiça, a mãe sub-encarregada, e a tia-madrinha empregada de escritório dessa empresa. Ao terceiro filho, a mãe foi para casa. O pai tinha dois empregos: era rabaneador na cortiça, tratava das pranchas dos sobreiros que vão às máquinas com os moldes de rolhas, e barbeiro por conta própria no pouco tempo livre que lhe restava, numa pequena barbearia que montou num compartimento na casa da mãe. Só descansava ao domingo à tarde.

Com seis filhos, e a mulher doméstica, saiu do país e chegou a tentar a sorte na Alemanha e em França, regressaria dois meses depois com saudades da família. Morreu, doente, há mais de 20 anos.

Família de oito, uma infância feliz

Aos 13 anos, Cristina trabalhava numa fábrica de cortiça perto de casa, em Lourosa, Santa Maria da Feira. Ia e voltava a pé. E quando chegava a casa sentava-se no sofá e ligava a televisão para ver os desenhos animados. “Chegava a casa, tomava banho e punha-me a ver os macaquinhos na televisão. Eu ainda era uma criança.”

Apesar das dificuldades, a família levava a vida para a frente. A mãe nas lides da casa, o pai dividido entre dois empregos. “Nunca passámos necessidades, nunca passámos fome. Tive uma infância feliz.”

Foi crescendo a trabalhar nas rolhas, não tinha liberdade para sair de casa até tarde, o pai não deixava, mas sempre dava para ir ao cinema a Espinho de camioneta, à praia, à discoteca. Preferia filmes românticos e comédias, Tony Carreira na música e outras canções estrangeiras que lhe entravam pelo ouvido. Aprendeu danças de salão. Conheceu o marido e casou-se cedo, aos 19 anos.

Esteve na fábrica ao pé de casa até a empresa falir, passou para a Amorim & Irmãos, tornou-se escolhedora de rolhas, casou-se no Mosteiro de Grijó, foi viver para São João da Madeira com o marido, saiu da Amorim e arranjou emprego na Califa, fábrica de confeção de camisas, onde trabalhou pouco mais de dois anos.

Regressou a Lourosa e voltou à Amorim & Irmãos, ao mesmo posto de trabalho, onde esteve 16 anos, até ser incluída num despedimento coletivo da empresa. Dois meses depois, já estava a trabalhar na Fernando Couto – Cortiças S.A., em Paços de Brandão, por recomendação dos antigos patrões. Ainda hoje vai aos jantares de Natal da Amorim & Irmãos com os ex-colegas de trabalho. É um encontro de convívio que tem mais de 20 anos. Tem boas recordações da empresa, participava na quinzena cultural da fábrica, em tudo o que fosse desporto – atletismo nas corridas à volta da empresa, no pingue-pongue, nos matraquilhos humanos, nos passeios de bicicleta até à praia de Maceda, em Ovar.

Aos 27 anos, foi mãe. O filho, de 21 anos, está no 12.º ano e exige cuidados especiais por lhe ter sido diagnosticado síndrome de Asperger. Cristina vive com o filho num apartamento, esteve casada 16 anos, está divorciada há 12. A força que lhe vem de dentro não é só feita de fé. Também vem daí. “Sou sozinha e isso dá-me força. É massacrante estar no desemprego.”

“Sou sozinha e isso dá-me força. É massacrante estar no desemprego”

Cristina não vacila naquilo em que acredita e tem uma coragem de ferro. Mas o corpo e a cabeça ressentem-se. Mais dificuldade para dormir, a hérnia na coluna que lhe prende a perna não ajuda, a tendinite no ombro também não. Agora, raramente sai de casa.

Arruma, arruma, arruma. “Invento pó onde não existe”, conta. Muitas vezes, cola os olhos às novelas da televisão para se distrair e anda em acompanhamento psicológico. E faz contas à vida. “Vivo com pouco e tenho de saber gerir o dinheiro.” A renda do apartamento, a medicação do filho e a sua, a luz, a água, o gás, a conta do supermercado. “Se se tira e não se põe, o dinheiro acaba.”

Cristina não sonha com muito. Não é ambiciosa, não joga no Euromilhões, não se imagina a fazer outra coisa que não seja na cortiça. Neste momento, só pede que o filho termine o 12.º ano, “que consiga levar o seu futuro para a frente”, e que recupere o seu posto de trabalho.”Preciso do meu ordenado, quero trabalhar”, repete. Na mesma fábrica? Sim. “É uma boa empresa, até paga antes do fim do mês. E se o meu posto de trabalho está lá, por que não hei de voltar? Se me chamarem hoje, eu vou.”

Os mesmos sacos, as mesmas rolhas

Cristina nunca quis deixar de trabalhar, recusou várias propostas para revogar o contrato de trabalho, nunca indicou uma quantia para sair da empresa que a colocou a carregar e a descarregar os mesmos sacos de rolhas num processo inútil e improdutivo. “Não tenho muita ilusão com o dinheiro, o dinheiro não me sobe à cabeça, desde que tenha para viver o dia-a-dia, é suficiente.”

A sua história foi tornada pública. Deu muitas notícias, peças de televisão, artigos de opinião. O ministro do Trabalho, da Solidariedade e da Segurança Social conhece o seu caso. O Movimento Democrático de Mulheres (MDM) enviou uma carta aberta ao primeiro-ministro a pedir a intervenção de António Costa.

O sindicato do setor organizou uma marcha solidária, onde estiveram Catarina Martins, do Bloco de Esquerda, e Arménio Carlos, da CGTP, e para ontem, sábado, 26, estava previsto um cordão humano frente à Câmara de Santa Maria da Feira por solidariedade com a trabalhadora, pelo direito ao trabalho e contra os despedimentos ilegais.

Os últimos anos e meses não têm sido fáceis. Em julho de 2016, Cristina estava de baixa por um problema de saúde, a empresa Fernando Couto – Cortiças S.A. chamou-a para lhe propor a revogação do contrato por mútuo acordo. Não aceitou. Dois meses depois, começava o processo de extinção do seu posto de trabalho. Em janeiro de 2017, foi despedida com esse argumento.

Não percebeu, não se conformou, recorreu à justiça para contestar o despedimento. Em abril de 2018, o Tribunal da Relação do Porto deu-lhe razão e obrigou a empresa a reintegrá-la no seu posto de trabalho e a pagar-lhe uma indemnização por danos morais. Durante esse tempo, no fundo de desemprego, de um ordenado de quase 800 euros limpos que encolheu para metade, Cristina frequentou vários cursos de formação – francês, empreendedorismo, análise sensorial ao cheiro da rolha.

A 7 de maio de 2018, voltou à corticeira para ocupar o seu lugar de alimentadora e recebedora de rolhas, para tratar da alimentação das máquinas, despejar as alcofas das rolhas, coser sacos – o que fazia antes de ser despedida. Recebeu a bata antiga, quando as colegas já tinham uma nova, começou como empregada de limpeza a aspirar o chão da fábrica e pouco depois estava em cima de uma plataforma, a mais de quatro metros do solo, a carregar e a descarregar os mesmos sacos com mais de cinco mil rolhas, 15 quilos cada, assim sucessivamente.

Os mesmos sacos, as mesmas rolhas, nove horas por dia, de segunda a quinta-feira, e das oito da manhã ao meio-dia à sexta, num pavilhão que aquece com o sol. Cristina sofre de vertigens, tem uma tendinite num ombro, uma hérnia na coluna, chegou a sangrar do nariz quando as chapas transparentes do teto deixavam passar os raios de sol.

O Sindicato dos Operários Corticeiros do Norte, que já estava a acompanhar o caso, voltou a entrar em ação. A empresa propôs um acordo de revogação do contrato de trabalho da operária. Cristina recusou. Recebeu ordem para usar uma casa de banho diferente das colegas, com uma janela que lhe retirava a privacidade, com vista para um largo da empresa e a caminho da casa de banho dos homens.

Levava uma toalha escura para tapar a janela como podia, enquanto as colegas tinham uma chave para ir a uma outra casa de banho, vedada apenas à sua utilização. E Cristina continuava a fazer o seu trabalho, a carregar e descarregar os mesmos sacos de rolhas, mais de 30 vezes por dia.

O sindicato pediu a intervenção urgente da ACT – Autoridade para as Condições de Trabalho com a indicação expressa de que “a funcionária continuava a executar funções improdutivas e humilhantes”. A ACT esteve duas vezes na empresa e a 28 de novembro de 2018 sabe-se que a fábrica de cortiça tem uma multa de 31 mil euros pela prática de assédio moral à trabalhadora.

Um ano antes, em 2017, a ACT detetou 22 infrações por assédio moral, cujas multas podem chegar aos 61 mil euros, e 191 casos de violação dos direitos dos trabalhadores. No ano anterior, um estudo da Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego revelava que 16,5% dos trabalhadores portugueses eram vítimas de assédio. O caso de Cristina é mais um.

A coima da ACT foi contestada pela corticeira de Paços de Brandão que em novembro do ano passado suspendeu a operária para tratar de um processo disciplinar com vista ao despedimento por justa causa. Em dezembro, a trabalhadora recebeu o processo disciplinar com intenção de despedimento, acusada de difamação com base nas notícias vindas a público.

No passado dia 10, Cristina recebeu o relatório final com o seu despedimento por justa causa que o sindicato vai contestar em tribunal. A operária corticeira está sem trabalho há quase dois meses. Avizinha-se mais uma caminhada na justiça. Cristina só quer voltar à empresa e continua a rezar. “Rezo o terço muitas vezes e Deus tem-me ajudado porque não cometi mal nenhum.” Deus e os homens e uma luta pelo mais elementar direito ao trabalho.