Texto de Sofia Filipe
O parque infantil da rua onde vivem, em Oeiras, foi o local escolhido por Samuel Duarte para dar a notícia aos seus três filhos de que a mãe tinha falecido. Samuel “não sabia o que dizer” quando se sentou com Rodrigo do lado esquerdo, Guilherme em pé à sua frente e Matilde no seu colo.
“Não me recordo das palavras exatas que usei para comunicar que a doença tinha vencido”, lembra o motorista de 43 anos. Era 2016 e os filhos estavam na escola quando presenciou o último suspiro da mulher, Susana Yu. Segurava-lhe a mão e estavam em casa. Rodrigo tinha 14 anos, Guilherme, 11 e Matilde, 8.
“Não tive receio de dar a notícia. Só pensava em como iriam reagir e queria encontrar a melhor maneira de os amparar. O meu medo era o futuro”, revela. O filho do meio “ficou sem reação” enquanto os outros dois choravam.
Em 2013, Susana soube que tinha cancro da mama e que teria 30% de hipótese de sobreviver se, nos três anos seguintes, não sofresse recidiva. Mesmo no fim do prazo, descobriu que tinha metástases no cérebro e num pulmão e em poucos meses sucumbiu. “Sabiam que a mãe tinha uma doença grave, mas nunca demos a entender que iria morrer.”
O contacto das crianças com a morte ocorre de diversas formas, resultando num acontecimento esperado ou inesperado, desde a perda de familiares idosos, a pais, irmãos, amigos ou animais de companhia. “A morte é um assunto sempre sensível e naturalmente associado a emoções de tristeza, zanga, raiva, medo”, assinala Marta Marques, psicóloga educacional e investigadora do projeto IDEA (Investigação de Dificuldades para a Evolução na Aprendizagem) na Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa.
Se já é um assunto abordado com delicadeza entre adultos, mais ainda perante crianças. Contudo, o eufemismo é muitas vezes um recurso para comunicar com os mais novos. João Guerra, pedopsiquiatra do Centro Hospitalar do Porto (CHP), refere que “são inúmeras as metáforas utilizadas para explicar que alguém querido já não está entre nós”.
Todavia, “essas explicações não tranquilizam as crianças”, até porque “quanto mais novas, maior a probabilidade de acreditarem literalmente no que lhes é dito”. Este especialista acrescenta que “o impacto destas perdas é subestimado por se atribuir à criança uma certa inocência e ‘anestesia’ pela própria idade”.
Sofia Salgado Mota, educadora de infância, mestre em Pedagogia e especializada em Parentalidade e Educação Positivas, é da opinião que os pais devem contar à criança quanto antes o que aconteceu. “É necessário pensar com frieza e deixar os sentimentos um pouco de lado, por muito que custe”, sustenta a autora do blogue “Pedaços de Nós”, de Guimarães.
Apesar de “não existirem ‘fórmulas’ corretas” para dar uma notícia desta índole, “pode e deve existir sensibilidade, afeto e segurança”, frisa Marta Marques, para quem a abordagem deve ser verdadeira e clara, “adaptando o discurso à necessidade de informação que a criança apresenta e à idade”.
Anunciado o acontecimento, há a questão de envolver, ou não, a criança nos rituais fúnebres. Para Sofia Salgado Mota, é a “criança quem decide”. A criança “tem o direito de ser ouvida”. “A maioria dos especialistas em luto concorda que é benéfico”, aponta João Guerra, advertindo que os adultos devem preparar os mais novos para a experiência “sem eufemismos” e acompanhá-los, mostrando disponibilidade para responder a perguntas.
Samuel perguntou aos filhos se queriam ver a mãe, que ainda estava em casa, e teve uma resposta afirmativa por parte dos três. “Não esqueço o Rodrigo a colocar entre as mãos da mãe um sabonete que lhe tinha oferecido. Dei indicações à agência funerária para manterem tudo conforme estava”, comenta este pai, que no velório proporcionou aos filhos “um momento só deles, longe de olhares, perguntas ou comentários”. No crematório, apenas Matilde acompanhou o pai e a melhor amiga de Susana. “Quando as portas abriram, saiu. Tinha uma forte ligação à mãe.”
“Pedia ajuda para ir visitar o irmão ao Céu”
Forte era também a relação entre os irmãos Cátia e Gabriel. Se fosse vivo, Gabriel teria completado 14 anos em maio último. Morreu em 2011 de paragem cardiorrespiratória, no quarto. “Punha livros no chão para ficar mais alta e chegar facilmente ao irmão com o intuito de lhe dar beijinhos. Gostava muito do Gabriel”, recorda Sílvia Batalha, 44 anos, referindo-se a Cátia, atualmente com dez anos. “Dissemos-lhe que o mano foi morar para o céu. Explicámos que há um limite de vida”, conta António Rodrigues, 42 anos, técnico de manutenção na Tabaqueira.
Estes pais, de Sintra, sofreram uma reviravolta em 2005. Ora um, ora outro foram desabafando, sussurrando certos pormenores, para que a filha, que entretanto fora para o quarto, não ouvisse, “porque não gosta de lembrar ou ainda não sabe”. Referem que o primogénito “teve paralisia cerebral durante o nascimento por negligência médica”, causando uma “enorme revolta” que se acentuou com a morte.
“O menino gostava muito de colo e, apesar de não falar, interagia à sua maneira connosco”, dizem. António entrou em estado de choque ao saber da morte do filho. “Foi como se se abrisse um buraco no chão.” Sílvia, que deixou o emprego na área administrativa para ser cuidadora a tempo inteiro, não se recorda como chamou os bombeiros quando deu pela morte de Gabriel. “São momentos muito nebulosos.”
Segundo João Guerra, “as crianças fazem o luto durante mais tempo do que os adultos, refazendo-o a cada nova etapa do desenvolvimento à medida que mudam a perspetiva sobre si próprias e do mundo à sua volta, atribuindo um sentido e um significado mais maduro à perda passada. Manifesta-se sempre com uma tradução comportamental”.
De início, “Cátia colocava-se atrás das cortinas a simular conversas com extraterrestres, em que lhes pedia ajuda para ir visitar o irmão ao Céu”, recordam os pais. Certo dia, em que brincavam às escondidas, a menina não conseguiu encontrar a mãe e entrou em desespero, porque pensou que tinha desaparecido para sempre. Uma das piores fases foi quando entrou para a creche. Referem que a adaptação foi muito difícil e que os induziram em erro, dizendo que a filha teria espectro de autismo.
“Sempre que pedíamos ajuda aos médicos, informando-os da tristeza da menina pela morte do irmão, respondiam que ela iria esquecer. Mas a situação foi-se agravando. Todos os dias chorava. Felizmente, tivemos o apoio da psicóloga da Tabaqueira, que disse à educadora de infância que tinham de saber incluir a Cátia.”
Marta Marques sublinha que as circunstâncias determinam a forma como o luto é vivido, sobretudo em situações de morte inesperada. “Os adultos devem procurar respeitar o tempo da criança, ouvi-la nas suas preocupações, acompanhá-la nas suas frustrações, zangas e tristeza”, observa, apontando para as cinco fases do luto: negação, raiva, negociação, depressão e aceitação.
João Guerra refere alguns fatores que podem perturbar o trabalho de luto normal e que requerem apoio médico, como a incapacidade de o adulto significativo fazer o luto ou incapacidade de tolerar a expressão do luto da criança. O pedopsiquiatra acrescenta que uma duração e intensidade prolongadas de sintomas podem necessitar de intervenção clínica, tais como depressão ou hostilidade crónicas, desejo de se juntar ao falecido, medo ou pânico, perda de apetite ou dificuldades recorrentes do sono.
O impacto da perda, tanto no presente como no futuro, “depende da forma como o assunto for abordado e trabalhado, assim como do apoio e da capacidade de a criança colmatar, de alguma forma, a falta dessa pessoa na sua vida”, defende Sofia Salgado Mota. “Aos profissionais cabe estarem atentos, pois a criança costuma dar sinais daquilo que necessita”, acrescenta, indicando a alteração nos comportamentos como um sinal de alarme, bem como agitação, pesadelos, regressão (voltar a usar chupeta, incontinência urinária noturna) ou tristeza.
“O segredo é observar com atenção”, aconselha a educadora de infância, que lidou de perto com uma situação de perda de um progenitor, em que surgiram alterações comportamentais com o decorrer do tempo. “Como em contexto de sala seria difícil fazer um acompanhamento correto, pedi uma avaliação e acompanhamento psicológico. Foi o melhor que fiz.”
Um grupo que brincava aos funerais
Na opinião de Sofia Salgado Mota, de uma maneira geral, “as crianças lidam com a morte com uma ligeireza que por vezes assusta. Encaram como algo natural provavelmente por não compreenderem muito bem que é o fim, que não vão ver mais a pessoa”. Conta ainda que teve um grupo que brincava aos funerais. Enquanto um desempenhava o papel de morto, os outros faziam um cerimonial que correspondia à realidade. “Acabei por perceber que uma delas tinha ido a um funeral com a avó e replicava em contexto de sala.”
Não raras vezes, desde os 11 meses, Duarte, quatro anos, ficava em casa de Manuel Teles quando a mãe, Catarina Roquete, 30 anos, ia trabalhar na área de massagens terapêuticas. Esta mãe de Cascais classifica de “fofinha” a relação que o filho tinha com o tio-bisavô, que faleceu repentina, mas calmamente, em casa, aos 76 anos. Deu a notícia da morte a sós, tranquilamente, sem esconder nada e adaptando o discurso à idade do filho. “Disse-lhe que tinha ido fazer uma viagem ao céu, que estava junto do avô Emídio e da avó Helena e que já não voltava.”
Foi a primeira vez que Catarina focou o tema com Duarte. “Não sabemos qual a melhor abordagem, mas parece que ganhamos uma força como mães que ajuda a escolher as palavras certas”, confessa, lembrando que ficou expectante com a resposta do filho, na altura com dois anos. “Reagiu bem e colocou algumas questões. Nos primeiros dias, quando íamos a casa da minha tia-avó, perguntava pelo tio”, diz a cascalense, cujo filho, ao brincar com os bonecos, por vezes simula a morte de algum. De quando em vez, Duarte fala no “tio fadista” (nome pelo qual Manuel era conhecido na zona) e observa com atenção as fotografias.
Ao saberem dos benefícios de um animal de companhia, Sílvia Batalha e António Rodrigues adotaram a gata Puma, que “fez milagres”. Também alteraram o discurso de revolta pela morte de Gabriel, retiraram algumas fotos do filho mais velho e deixaram de falar em alguns assuntos. Sílvia trabalha a partir de casa em artesanato e cozinhados para poder acompanhar mais de perto a filha. “O luto não se faz, vai-se fazendo. Temos aprendido a viver e a ser felizes à nossa maneira”, mencionam os pais de Cátia, que com frequência a levam a passear e visitar museus e exposições.
Rodrigo, Guilherme e Matilde tiveram imenso apoio dos professores e frequentaram consultas de Psicologia. Os dois mais velhos fizeram poucas sessões. Já Matilde andou em terapia durante um ano para “trabalhar aspetos relacionados com emoções”. Quando se fala de Susana Yu, “a conversa flui, mas gostava que falassem mais”, admite Samuel Duarte, que deseja manter o ritual de lançar um balão lanterna no passeio marítimo de Oeiras no dia do aniversário da mulher.