Cancelados nas Flores: “É isto. Estamos ‘praqui’ na América sozinhos”

Texto de Ivete Carneiro

O que dizer do arroz? Bem… Pela janela da sala apercebe-se o infinito. Diz-se que ali é a freguesia mais ocidental da Europa, contando que a vista seja a partir de Portugal, que tem ali a ponta mais perto da América. Ou melhor, tem ali uma lança na América.

A França poderia reclamar o título, tem ilhas como esta lá bem mais longe, no regaço da América. A não ser que o ocidente seja um traço imaginário entre os Açores e o diabo da América, já chega de lhe dizer o nome. Ou talvez não. Porque ali é, efetivamente, geograficamente, atlanticamente e tectonicamente, a América. É a tão portuguesa Ilha das Flores. Mas o arroz, que diabo…

Da janela da sala apercebe-se o fim da aberta. Chegáramos pela manhã soalheira, fugidos da negritude que se abateu sobre a metrópole, São Miguel. Sim. Metrópole. Porque as Flores, ainda esta semana nas notícias porque uma derrocada isolou 270 pessoas, são a insularidade dentro da insularidade açoriana, é o território daqueles que têm que ir nascer a outro lado, daqueles que podem ter que passar natais noutro lado, é o fim do mundo. Ou a janela para ele.

Apercebe-se, dizíamos, o fim da aberta. Tínhamos horas de Flores, a chuva ficara na Ponta Delgada micaelense. “Amanhã não há voos.” É assim. A nós tanto nos faz, que amanhã é dia de calcorrear os trilhos da ilha e o tempo pode ser o que calhar. Só que… “Domingo talvez.” “Segunda e terça nem pensar. Ai vão na segunda? Podem desfazer as malas.”

E o céu desaba, num repente. Desaba como se não houvesse amanhã. Chove. Estava escrito nas nuvens, com todos os dizeres que se foram multiplicando, já se sabe que mais vale rir da desgraça do que agastarmo-nos com ela: estamos “cancelados” nas Flores.

“Ui. Cancelar é o verbo que mais se conjuga por aqui.” E Tércio Sousa praticamente agradece, fixando o olhar no firmamento. É de manhã e está um breu que nem é bom dizer. “A ilha está cheia de gente por vossa causa!” Bom, a culpa seria mais da Diana, a depressão que nos pregou ali, mas para Tércio tanto faz, o que ele tem são carros de aluguer e as Flores, no inverno, é o que se sabe. Frota toda empandeirada, que o que ali fôramos fazer, no tal amanhã sem voos, fora uma corrida de montanha com taças e tudo e muita gente a correr por elas. Ilha completa, hotéis cheios, quatro estrelas à pala da SATA e pensão completa.

“Ui. Cancelar é o verbo que mais se conjuga por aqui.”

É bom, tão bom… Telefonemas aviados, empregos avisados, famílias sossegadas, estamos cancelados nas Flores e ir às Flores e não ser cancelado é quase como ir a Roma e não ver… Esperem… Em Roma não vimos o papa… Bom, adiante. “As Flores são o Irão dos Açores: irão hoje, irão amanhã…” Ou, “hoje aqui, amanhã nas Flores…” Ou SATA como “Sempre Atrasada na Terra e no Ar” ou como “Só Amanhã Temos Avião”, a calma, aqui, é o que prevalece acima de tudo.

“Os florentinos são alentejanos que aprenderam a nadar”, diz-nos André, faialense por acaso, florentino por amor, homem de lemes com conversa avulsa sobre nós e pontos cardeais. E então, podemos aproveitar e ir ao Corvo? Nada. Nem céu, nem mar.

Além do avião, o barco

Domingo, sol de novo, como se não tivesse havido ontem e alerta vermelho, como se não houvesse amanhã e depois de amanhã e alerta vermelho. Do alto do largo da Igreja de Nossa Senhora do Rosário, nas Lajes, um dos concelhos das Flores, o tal mais ocidental, vê-se “o barco”, carregado, sossegado.

Só hoje o mar permitiu que um porta-contentores trouxesse 15 dias de víveres à ilha, dias depois da hora. Mas é domingo e ao domingo, no fim do mundo calmo, descansa-se do corrupio da semana. As prateleiras dos supermercados – estranhamente, em terra com pouco mais de 3800 almas, são uma boa mão cheia deles – estão como nós, canceladas. Um deserto que faz eco. “Venezuela? Não, Flores. E é normal.”

Por muito que esteja habituado, José Carlos Mendes lamenta. É presidente da Câmara do outro concelho, Santa Cruz, o do aeroporto que volta e meia está fechado, um município tem barco o outro avião, está certo, quando a tempestade chega não há nada que valha a nenhum deles.

O barco pode demorar uma semana, os aviões são cancelados, 344 em 2017 para todo o arquipélago, a imensa maioria nas Flores e no Corvo. E se os turistas acabam por ver prolongadas as férias – a SATA, diz-nos o porta-voz, António Portugal, gasta um milhão de euros anuais em estadias e refeições e voos extraordinários (398 no ano passado) para garantir as ligações para fora dos Açores -, os florentinos veem atrasado o regresso a casa. Ou a ida ao hospital.

Carlota tem a filha a correr-lhe entre os joelhos. Nasceu no Faial. Para evitar sobressaltos, uma grávida sai de casa um mês antes do termo da gravidez. Recorda as memórias do Faial. Passou lá demasiados dias à espera que o sol abrisse para voltar a casa depois de meses fora a estudar.

Sílvio Gonçalves, marido de Carlota e genro do homem que idealizou a Aldeia da Cuada, caminhos de pedra incerta e paredes com 300 anos abandonadas e hoje transformadas em paraíso, é como que um embaixador. Um poço de curiosidades. Como aquela em que um piloto acordou num dia de Natal, viu sol e ignorou as regras que ditam que a SATA não voa naquele dia para ir às Flores entregar os florentinos que vinham do continente para passar as festas e foram pregados noutra ilha pelo mau tempo. Essa é das bonitas. Como também o é aquela segundo a qual um jato privado abortou duas aterragens numa tarde ventosa, antes de um piloto da SATA “aterrar como manteiga” e postar-se, a rir, na beira da pista a picar o colega.

Depois há as feias. A daquele voo que parou tragicamente no nevoeiro do Pico da Esperança, em São Jorge, carregado de florentinos a caminho do Natal, o destino tem crueldades indizíveis. Era no tempo em que voar era menos fácil. Não que agora seja mais fácil, mas talvez a experiência de pilotagem em condições adversas se tenha, com o aumento das ligações, tornado maior.

Diz Sílvio que ouviu dizer que num ranking de aterragens em zonas difíceis, só os pilotos do Alasca ganham aos açorianos. Não conseguimos confirmar a informação, mas que nos deu tranquilidade deu. Porque a aterragem fora mais sobressaltada do que uma estrada no norte da Etiópia e a açoriana de idade que nos cravava as unhas nos braços ao agarrar a nossa cadeira era a primeira a mandar calar os nossos risos nervosos.

E o diabo das cebolas

“Oh, a sério, voam amanhã? Não… Amanhã vocês vêm cá jantar que faço um bacalhauzinho.” Jorge vive de olhos pousados na linha do horizonte que esconde a América, a que sai fora de água. Trocou Lisboa pela Fajã Grande porque sim. E reúne amigos em dias de tempestade. “Venham cá ver as ondas.” Admite, a fúria do oceano intimida-o, tem dias. Admite que, nesses dias, chama André, o faialense, cuja calma de profundo conhecedor das marés parece um elixir.

E a calma é isto: fazer contas aos stocks e nunca marcar voos de ligação no dia em que se sai das Flores, não vá o diabo tecê-las. O que vale é que por ali se faz queijo do melhor. O que vale é que por ali tudo se congela, até o peixe fresco, não vá, lá está, o diabo tecê-las. Só não se cultivam cebolas apesar da fertilidade das fajãs… O que vale é que por ali se aprendem essas outras regras da vida lenta.

“Gasolina, só das 9 às 5 de segunda a sexta e pão é de véspera”, conta Sílvio, que açambarca gás e café e arroz e batatas e, claro, cebolas, para 60 dias para alimentar os hóspedes da Cuada, essa terra chã que fica em altura porque se quis protegida do mar e dos intrusos.

“Gasolina, só das 9 às 5 de segunda a sexta e pão é de véspera”

É ali que nos dizem que a água das cascatas, nas Flores, sobe muita vez no lugar de descer e que quando assim é, pois, não há voos. Achamos que é efeito de alguma droga até que elas se nos apresentam assim, esgazeadas e despenteadas, a inundar o céu, canceladas como nós. Como a vida por aqui. Hoje e amanhã não há escola. As aulas andam quase de mãos dadas com os aviões.

As rajadas, violentas, acima dos 130 km/h já causaram acidentes no planalto que todos têm de cruzar para ir aprender à vila. “Antes prevenir que remediar”, diz José Carlos Mendes. “Quem vive nas Flores aprendeu a viver com isso” do mau tempo e dos voos cancelados, “faz parte da natureza e das particularidades” das ilhas, mormente desta. Que goza, por isso mesmo, do estatuto de “ilha da coesão”, com as outras quatro mais pequenas do arquipélago, e do “apoio acrescido às famílias e às empresas”.

À SATA vale o caso de ser a única a cumprir ali um serviço público que a Europa impõe e de ser compensada por isso – o último concurso público, em 2015, previa 135 milhões de euros para cinco anos para garantir ligações mínimas entre ilhas, voos extraordinários para compensar irregularidades e preços especiais para residentes. À SATA vale o caso de não ter concorrentes nesse serviço público e de ser a salvação dos açorianos, malgrado os resultados negativos (41 milhões em 2017).

“É isto. Estamos ‘praqui’ na América sozinhos”, ri-se César Rosa, enquanto limpa o pó a um frasco de óleo de baleia no primeiro andar do Museu da Fábrica da Baleia do Boqueirão, onde fomos e voltámos, que o relógio impôs almoço e há tempo para tudo quando o alerta está no vermelho e chove e venta e pouco mais se pode fazer. Dizemos que ficamos retidos. Diz que não, que estamos “cancelados”. Dizemos que vamos comer bacalhau com Jorge. Diz que o abracemos por ele. A ilha das Flores é uma América pequena, cheia de vida social sem mais do que um bar, porque a vida é a mão estendida ao vizinho, a vida é ver numa fila de duas pessoas no multibanco motivo para voltar mais tarde, quiçá amanhã, a vida é deixar os olhos perderem-se nas nuvens.

Na esquina da Rua Professor Doutor Gustavo de Fraga, na Fajãzinha, José Baldes acolhe os cancelados no dia em que a Diana se despede e deixa no céu do ocaso o sangue da sua passagem. Tem 80 anos e está em liquidação de stock. Cansou-se da mercearia-tasca. Ele vive ali com umas 65 almas, entradotas, numa aldeia que cisma em ter uma festa de crianças quando não as há.

Nunca foi além do Faial. Gostava de ver Fátima, mas “80 anos não é idade de viajar”. José pontua as frases com “ohs”, simples, enquanto assoa o nariz irritado pelos ventos carregados da salmoura que nos pinta o carro de farinha. Tem cebolas num saco pousado no chão. “O barco veio.” Chegou à América carregado de cebolas. Porque as cebolas, já se sabe, não crescem aqui. E arroz sem cebola, que diabo…