Reformado de dia, Nany Petrova à noite

Texto de Milene Marques | Fotografias de Leonel de Castro

Passa pouco da meia-noite. Fernando Soares entra no Invictus e toma um café ao balcão. As luzes continuarão baixas até à hora do espetáculo em que homens viram divas e cantam em playback. Todos menos Nany Petrova, o eterno artista do burlesco ali residente. Todas as sextas e sábados há espetáculos de transformismo na casa com mais programação do género no Porto.

Fernando sobe ao camarim e divide o espelho com Roberto, o dono do bar e amigo de longa data, que à noite encarna a sensual Roberta Kinsky. Primeiro a base, depois as sombras carregadas de cores, o lápis grosso pelos olhos, as pestanas postiças metalizadas, tudo à medida exagerada das personagens que Nany interpreta.

O cigarro, sempre colado aos lábios, consome-se quase sozinho durante a mutação que vai sorvendo Fernando. Um ouvido surdo ajuda ao alheamento. Já não ouve ninguém. É aqui que começa a entrar em Nany, explica mais tarde. À hora de passar o batom, hesita e pede ajuda.

São já 44 anos de carreira como transformista, pioneiro nos bares gays do Porto. A primeira vez que Fernando Soares se vestiu de mulher foi numa casa particular de um amigo, habituado a receber muita gente. Ali nasceu o 43 Club. Corria o ano de 1974, dois após o seu regresso de Angola, do Ultramar.

Seguiu-se a participação no concurso “A visita da Cabrélia”, também vestido de mulher. Era um colega que o pintava, até que um dia falhou e teve que se desenrascar sozinho.

Os truques da arte foi apanhando com os transformistas das casas de Lisboa, onde muitas vezes atuou como artista convidado. Colar os brincos às orelhas com pastilha elástica, usar papel higiénico à volta da cabeça para sugar o suor, entre um mundo de segredos que não acha piada revelar. Enche o peito para dizer que trabalhou com os ícones Ruth Bryden e Lydia Barloff, no Finalmente.

Ainda hoje os conceitos se confundem, e talvez por isso Fernando faça questão de frisar a cada instante que não gosta de se sentir mulher. “Eu nem gosto de me vestir de mulher. Isto para mim é uma ferramenta de trabalho, como a bata de um enfermeiro. Isto é teatro. A minha cabeça não é nada de mulher.” O estilo tosco e a rouquidão do tabaco também não. Cara pintada, Nany desce do camarim vestido de Fernando. Faz tempo no bar até perto das 2 horas, quando sobe para a segunda parte da caracterização.

Burlesco até aos 80 ou 90 anos

É perto dessa hora que a casa, uma espécie de cabaré saído de um filme de série B, com sofás dourados e robóticas luzes néon a preencher o vazio, começa a compor-se. Quem passa na Rua da Conceição é atraído pelos altos decibéis vindos do fundo de um corredor de acesso a umas antigas galerias.

À entrada, um cartaz com as estrelas da noite anuncia o “show de transformismo”. A uma série de homens de meia-idade começam a juntar-se grupos de jovens à procura do excêntrico. Há dias melhores do que outros e o estabelecimento ainda sente os efeitos de uma casa que se está a fazer, com dois anos.

Uma a uma, as divas descem as escadas e tomam o centro da sala de micro na mão. O playback é quase acessório. Ali disputam-se as melhores silhuetas femininas, as transformações mais perfeitas. Até à entrada da hiperbólica Nany, a disruptiva – ora Rosinha das montanhas, vestido curto, axadrezado aos folhos e acordeão nas mãos, a fazer que canta “Eu levo no pacote”; ora “sereia” que brinca na praia com revistas porno e bananas enquanto balbucia a letra de “Cuando calienta el sol” e pisca o olho aos homens; ora Ágata em “Comunhão de bens”, a empurrar o carrinho do Nenuco.

A sala ri-se. As palavras atropelam-se no sotaque tripeiro. Foram proferidas na última homenagem ao seu longo percurso artístico, no Porto Drag Festival de julho passado, no Café Lusitano, mas não se desviam das ditas no final de outros espetáculos, quando brinca com episódios da sua vida e se mete com o público à espera de arrancar-lhes mais gargalhadas.

As personagens, desenha-as mentalmente quando está na cama, depois de escolher as músicas para os seus playbacks, aquelas que se colam em “loop” à memória. “A idade não me afeta nada”, diz Fernando. “Sendo burlesco, eu posso ter 80 ou 90 anos e fazer shows.”

É esse bichinho do espetáculo que não o deixa largar este mundo, mesmo tendo começado a trabalhar aos 14 anos e estando reformado há mais de dez, desde que saiu da sauna onde era funcionário.

“Fui empregado de restaurante, tipógrafo, metalúrgico, mas nunca deixei o transformismo. Isto para mim é uma arte e não é fácil, porque eu não levo isto como uma mariquice. Às vezes, estou cheio de problemas e tenho que fazer rir. E a mim quem me faz rir?”, atira. Fernando só recorda uma época em que esteve afastado de Nany, por implicação de um namorado. Não durou um ano, o tempo da relação. O bichinho venceu. Nesta altura, já só se cansa dos “mexericos do mundo gay, do leva e traz”, destaca.

“Eu nunca desisti, nem desisto. Como dizia a Palmira Bastos, as árvores morrem de pé. Enquanto as perninhas mexerem e a vozinha tiver poder de graça, eu vou andando.” Dos áureos finais dos anos 70 e dos anos 80 traz vivas as lembranças dos dias corridos de espetáculo em espetáculo.“Antigamente, fazia três shows por noite e trabalhava de dia. Fiz muitas diretas atrás de diretas, porque tinha que entrar ao serviço às oito da manhã. Sempre quis trabalhar para hoje ter uma reforma, porque mais tarde não era com os shows que ia viver”, explica.

Percorreu “todos os cabarés do Porto, menos o Tamariz”, desde O Calor da Noite ou A Candeia ao entretanto reaberto Pérola Negra. A grande maioria já não existe. “Agora, tudo está mudado. Há uma crise muito grande”, comenta Fernando. “Na altura, o ambiente era mais reservado e divertido.”

Tratar da casa e do aniversário

A casa de Fernando esconde uma espécie de museu de Nany, que compete com as imagens de Marilyn Monroe nas paredes, almofadas e edredão da cama. Há lembranças de homenagens a Petrova expostas no móvel da entrada (como a do “amigo Marco Paulo” e de clubes noturnos) e um pequeno quarto forrado com momentos emoldurados da sua carreira, onde surgem fotografias com figuras públicas como Herman José, Carlos Castro e Wanda Stuart.

E tem perucas, tules e cetins. E há mais perucas, cuidadosamente dobradas do avesso, em caixas e caixinhas no quarto principal que divide com Óscar, o homem com quem partilha a vida já lá vão 24 anos. Conheceu-o quando lhe foi pintar a casa, mas recusa-se a casar. “Para quê, para ficar com a minha reforma?”, defende-se Nany nas suas apresentações. O público ri-se.

Em casa, são companheiros. Fernando madruga todos os dias para o ajudar a preparar a marmita e volta para a cama. “Sempre fiz transformismo, só que agora estou reformado e tenho mais vagar. Não para os espetáculos, mas para a vida de casa.” Fernando trata da roupa, limpa a casa, cozinha, cuida da cadela. Tem orgulho no lar e gosta de ter tudo impecável. Chegou a viver em quartos e não gostou da solidão experimentada. “Sempre sonhei ter a minha casa.”

A 16 de agosto passado levantou-se mais cedo. Havia bola de frango, rissóis, panados e pudim a preparar. Era o seu aniversário e recebia a família Invictus, a que escolheu, ao jantar – os mais novos, que gosta que lhe tratem por avó Nany, e os mais velhos, com quem leva uma vida a trabalhar na noite. À mesa todos se tratam no feminino.

Podia ser um bom ator… ou não

Fernando recua ao tempo em que, “sendo-se homossexual, quase se era preso”. Quando o pai descobriu a sua orientação, já após a tropa, renegou-o e deserdou-o. Abriu uma carta e viu uma fotografia do filho a beijar um rapaz, um namorico de Lisboa. Fez-lhe as malas e deu-lhe “uma tareia de mangueira”. Ficou uma semana a viver nas soleiras das portas, até receber o ordenado.

Filho único de uma família humilde dos bairros do Porto, Fernando sempre escondeu a sua vida de transformista aos pais. Mesmo quando, já após a morte do pai, a mãe ficou doente e foi viver para sua casa. “Tive sempre medo que descobrissem. Porque nasci e vivi em ilhas. Para a minha mãe não sofrer com os mexericos, evitei muita coisa”, confessa. “Era outra geração, totalmente diferente da de agora. Agora, as mães aceitam tudo, compreendem tudo”, enfatiza.

A carreira de ator de comédia ou revista em Lisboa também foi eternamente adiada, apesar do convite de Laura Alves no início da carreira, dado o seu “jeito para o improviso”, conta. “Hoje até podia ser um bom ator… ou até podia não ser, mas por causa dos namoricos e da minha mãe, sempre quis ficar aqui na minha terra. O meu Porto é cinzento, mas é onde estão as minhas raízes.”

Fernando sente-se realizado. “Os prémios que me podiam dar, já os ganhei”, realça. As participações no livro “Porto A’ Abrir” e no Festival da Canção do Marco de Canaveses a fazer de Carmen Miranda, além do Prémio Carreira na Gala Abraço (também conhecida como Gala dos Travestis), são os momentos que recorda como os mais marcantes desde que foi batizado de Nany Petrova por um colega. Ainda trabalhava numa metalúrgica e vestia-se de mulher nas festas de Natal. “Como diziam que os metalúrgicos eram comunistas, um colega deu-me esse nome russo. Como Nany tanto dá para mulher como para homem, ficou.”