Rui Cardoso Martins

O desespero de Vera

João Vasco Correia

Vera Pires. Quase nunca uso o nome verdadeiro da pessoa – o que interessa é o caso e os casos são verdadeiros -, mas Vera Pires pediu-me que o fizesse e, se isto a ajudar, está certo. Em troca, fiz-lhe eu um pedido:

– Não faça o que está a dizer. Tem de haver uma solução com a ajuda das autoridades. Pense na vida da sua filha e na sua.

Esta conversa foi lá em baixo na rua, na pedra ao sol do Campus de Justiça, depois da sentença. Vera levantara-se em lágrimas e correra contra o ex-marido que rodopiava como um carrinho de choque para lhe fugir. Estavam os dois no átrio e o desespero de Vera espalhava-se pelas salas, atravessava os andares do edifício.

Juízes, advogados, funcionários, arguidos, testemunhas de outros casos puderam ouvi-la como eu:

– É injusto! É injusto, entendes?! Monstro, tu és um monstro, não há justiça, eu faço-a com as minhas mãos. És um monstro! Não há justiça, eu vou fazer com as minhas mãos, às minhas filhas não vais fazer mais mal, garanto-te, eu mato-te a ti, podes crer. Absolvido, absolvido!, estás a gozar, és um monstro!

Vera desceu no elevador com a filha e o homem, de careca musculada, os braços em t-shirt de camuflado, foi discutir os pormenores com o seu advogado. Minutos antes, um juiz lia a sentença num rame-rame sonolento e os braços de Vera e da filha enroscavam-se um no outro como lianas e as mãos delas eram as raízes. O juiz falava na palavra de uma pessoa contra outra, de um homem levantar um martelo ao sair de um carro nos Olivais, Lisboa, à frente de um café, ameaçando que a matava, e os olhos de Vera começaram a tremer, húmidos.

– O arguido refutou em absoluto tal factualidade, pelo que, em face da negação dos factos efectuada pelo arguido, importa ponderar não ter sido produzida nenhuma prova no sentido de corroborar a versão dos factos apresentada.

Acresce que, continuou o magistrado, Vera “não careceu de receber qualquer assistência ou tratamento hospitalar”. E o instante da verdade (que será o da mentira) foi o esvaziamento do “crime de violência doméstica”:

– O tribunal decide considerar a acusação do Ministério Público improcedente porque não provada e, concomitantemente, absolver o arguido…

Vera mordia o lábio. A filha adolescente parecia incapaz de se levantar. O juiz mandou o pai dela em paz e foi aí que Vera saltou como uma mola e foi avisá-lo de que quem o matará será Vera Pires, dantes Vera Pires Costa. Na rua, a mulher não conseguia acreditar. O ex-marido foi condenado noutras ocasiões, mesmo agora trazia pulseira electrónica e “agora vai tirá-la e daqui a dias já está outra vez ao pé do café, à espera”. Alguém que lhe partiu braço, perna, cabeça. Um agressor que lhe apontou uma pistola.

– Ele disse-nos “vou descarregar o carregador em vocês”! Ele já mandou polícias para o hospital. Absolvido?! Quando há provas das técnicas de segurança social a dizerem que ele é uma pessoa perfeitamente violenta, que nunca se arrepende de nada! Eu nem pedi indemnização, não é o dinheiro que vai pagar o sofrimento que tenho há 20 anos. As minhas filhas… precisavam de um pai, não era de dinheiro! Não me matou com o martelo porque foi agarrado. Para ele foi uma vitória.

– E as testemunhas?

– Não apresentei testemunhas desta vez. As pessoas já têm medo dele.

A filha de Vera foi sentar-se à distância num muro.

– Que coisas fez ele à sua filha?

– Ainda na sexta-feira, disse que lhe dava uma sova como se ela fosse um homem, e que ela não lhe era nada.

O homem anda sempre em “festas de maluco”, disse Vera. Vive com outra mulher a quem já partiu um braço.

– Manda snaps do insta à minha filha a cheirar coca!

– Desculpe?!…

– Manda-lhe fotos pelo Instagram, a cheirar cocaína.

Silêncio. Se tiver que ser sou eu que o mato, repetiu Vera. Ponha o meu nome verdadeiro.

Não faça isso, Vera Pires.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)