Texto de Ana Patrícia Cardoso | Fotografia de Jorge Simão
Maria das Dores é uma mulher bonita, de conversa fácil e gargalhada alta. Tem 54 anos e dois filhos, Ana Rita, de 30, e Miguel, de 16. Hoje, a vida sorri‑lhe e viaja todos os anos com os colegas da SMAS de Vila Franca de Xira (é administrativa há 36 anos). Conta a sua história com o tom orgulhoso de quem venceu uma guerra e não precisa de introduções para falar do que interessa.
«O pior ano da minha vida foi 2005. Tinha 42 anos e fiquei sozinha, uma filha a entrar para a faculdade, um miúdo de 3 anos e vejo‑me obrigada a entregar tudo o que demorei anos a conquistar para pagar dívidas que não eram minhas.»
O ex‑marido Rui Manuel contraiu dívidas no valor de 46 mil euros por falta de pagamentos referentes à gestão do negócio que tinham em conjunto – um restaurante no centro de Vila Franca. Como sócia-gerente, Maria das Dores teve de entregar a casa da família ao banco como garantia. Os problemas começaram uns anos antes.
«Eu saía dos SMAS às cinco da tarde, limpava uma loja até às oito. Vinha para casa e tinha roupas para passar até às três da manhã. Limpava prédios a 10 euros à hora.»
«Em 2003 e 2004, começou a crise e o restaurante dava menos lucro. Às tantas, ele não ia trabalhar, estava sempre maldisposto, tratava‑me muito mal. Chegava bêbedo a casa, às quatro e cinco da manhã. Não queria este ambiente para os meus filhos. Quando soube de tudo já estava em processo de divórcio. Fiquei desesperada», lembra.
Só mais tarde soube que o ex‑marido frequentava uma casa de jogo clandestino. Disse‑lhe: «Trocares‑me por outra melhor do que eu, batia‑te palmas. Mas ser trocada por jogo e álcool… é muito triste.»
O ex‑marido tinha entrado numa espiral. «Estava perdido, não tinha coragem de sair à rua, tinha vergonha. Começou a ver trabalhos para a Holanda e foi embora. No dia antes disse‑me que só tinha vinte euros para a viagem. Fui a casa da minha mãe, trouxe dinheiro, fiz‑lhe comida para vários dias e dei‑lhe 400 euros para se governar.» Nunca mais voltou a Portugal.
«As minhas colegas diziam‑me, “mas tu não te vais abaixo?” E eu respondia, “não tenho vagar para isso”.»
Com dívidas ainda por pagar e os dois filhos a seu cuidado, a administrativa teve de arregaçar as mangas. «O meu trabalho era bom mas não chegava. Eu saía dos SMAS às cinco da tarde, limpava uma loja até às oito. Vinha para casa e tinha roupas para passar até às três da manhã. Limpava prédios a 10 euros à hora. No meu mês de férias tinha de ganhar para as propinas do ano inteiro da minha filha e ainda para o passe. E ganhava.»
Neste ritmo, chegou a perder 36 quilos em dois meses. «As minhas colegas diziam‑me, “mas tu não te vais abaixo?” E eu respondia, “não tenho vagar para isso”.» A filha mais velha foi sempre um grande apoio e foi ela quem incentivou a mãe a pedir o divórcio. Treze anos depois, não tem relação com o pai.
O mais novo tinha 3 anos e não tem memórias. «Há dois anos, foi conhecer o pai à Holanda. Eu nunca lhe disse nada de mal dele. Ele sofria no infantário porque os outros meninos tinham presentes e ele não. Por isso, quando tinha 8 anos, comprei uma PlayStation e disse‑lhe que tinha sido com dinheiro que o Rui tinha enviado. A felicidade do miúdo… ficou a achar que tinha o melhor pai do mundo.»
Depois de duas viagens, os dois não têm grande contacto. Por causa de um problema na coluna, Maria das Dores foi operada e diminuiu as horas de trabalho. «Mas continuo a ter uma escada para lavar e faço a administração de um prédio. Esse dinheiro é o meu mealheiro.»
O passado parece bem resolvido e a distância ajuda. «Para mim, o assunto está encerrado. Estou bem agora. Sei que ele foi o amor da minha vida. Mas foi também a pessoa que mais me magoou.»
LEIA TAMBÉM DA SÉRIE «MULHERES: 5 RETRATOS, UMA MÃO CHEIA DE HISTÓRIAS»:
Maria do Céu Santo: «A principal queixa das minhas pacientes é a diminuição da libido»
Mónica Antunes: «A luta das mulheres da Triumph é a luta de todos os trabalhadores»
Raquel Macedo: «O argumento que mais me irrita é ‘tu não tens filhos, não percebes’»
Maria Rueff: «Estou sozinha porque justamente acredito no amor»