Cinema: quando Eusébio adotou o nome de Ruth e quase foi raptado

Texto Rui Pedro Tendinha | Fotografias Orlando Almeida/Global Imagens

António Pinhão Botelho es­treia­‑se nas longas­‑metra­gens com Ruth, a história da contratação de Eusébio para o Benfica. Mas o filme do filho de João Botelho e Leonor Pinhão é sobretudo uma crónica de costumes sobre Portugal do final dos anos 1950 e começo de 60. Um folhetim rocambolesco que fez que Eusébio da Silva Ferreira fosse escondido pelos benfiquistas para que o Sporting não o roubasse, chegando­‑se a mudar o nome do craque para Ruth.

«Pouca gente sabe desta história. A ideia foi de Sofia Carvalho. chefe de produção da equipa de Paulo Branco, que propôs fazer deste folhetim um filme. Depois, foi contratada a minha mãe, Leonor Pinhão, que é argumentista», conta o realizador de 31 anos, formado na Escola de Cinema de Lisboa e na New York Film Academy.

Ruth é um exemplo feliz de uma via comercial do cinema português: uma obra sem peneiras artísticas que se limita a contar muito bem uma grande e improvável história, com um ritmo que não fica nada a dever à narrativa comum de muitos filmes de Hollywood.

Ruth é um retrato de uma época e da sociedade portuguesa no salazarismo, relatando com pesquisa jornalística aguda uma contratação que meteu tentativa de rapto, favores do Estado, intervenção militar e sabotagem ao mais alto nível.

Para António, benfiquista declarado (e é público que os pais são também «doentes» pelo clube encarnado), é importante esclarecer que este não é um filme sobre futebol ou para benfiquistas, embora tema, diz a brincar, os efeitos que o golo de Herrera no último Benfica­‑Porto possa vir a ter nas bilheteiras do filme.

Ruth é um retrato de uma época e da sociedade portuguesa no salazarismo, relatando com pesquisa jornalística aguda uma contratação que meteu tentativa de rapto, favores do Estado, intervenção militar e sabotagem ao mais alto nível. O «livremente inspirado em factos reais» que lemos no genérico é apenas para salvaguardar algumas liberdades de economia narrativa, como a condensação dos irmãos do Pantera Negra num só.

O desafio, diz Botelho júnior, era grande: «Todos sabem como acaba esta história. A ideia era tentar que o espetador ficasse agarrado a ela, apesar disso. Procurámos consegui­‑lo criando uma velocidade vertiginosa através da montagem e dos diálogos. Para isso, inspirei­‑me em filmes como Moneyball­ – Jogada de Risco, de Benneth Miller, e o clássico O Grande Escândalo, de Howard Hawks.»

«É sempre especial trabalhar com a mãe. Ela pôs­‑me muito à vontade quando me entregou o guião, que primeiro tinha duzentas e tal páginas e eu tive de reduzir para cento e vinte.»

Como cineasta, António diz­‑se muito diferente do pai, João Botelho. Não deixa de ser curioso alguém da geração 1980 a filmar o Portugal colonialista e ditatorial. Mas talvez venha daí o olhar fresco, que surpreende. Para António Pinhão Botelho há muita coisa que não mudou: «Lisboa continua a ser uma aldeia. Os cafés eram o Facebook da altura – ficávamos a saber de tudo lá. Mas investiguei muito, fui um privilegiado: tive acesso a muitos filmes e cassetes da época.»

Privilegiado nisso e, claro, em trabalhar com a mãe, Leonor Pinhão. «É sempre especial trabalhar com a mãe. Ela pôs­‑me muito à vontade quando me entregou o guião, que primeiro tinha duzentas e tal páginas e eu tive de reduzir para cento e vinte. Apesar desse voto de confiança, nunca fiz nada sem lhe dizer. Colaborámos imenso. E o trabalho foi enorme! O filme tem mais de oitenta atores!»

«Eu e a minha mãe tentámos distanciar­‑nos do nosso benfiquismo e fazer um filme sobre o Eusébio e sobre aquela época, enfim, um retrato do país. O Eusébio é muito mais do que o Benfica.»

«Mas o que me atraiu mesmo nesta história foi a ideia do herói relutante, neste caso um miúdo que só queria jogar à bola envolvido numa rivalidade patética. Acho muita piada ao facto de, mesmo sendo o protagonista, ele ser uma personagem algo secundária, uma personagem como o Lebowski no filme dos Coen [O Grande Lebowski, 1998]. Eu e a minha mãe tentámos distanciar­‑nos do nosso benfiquismo e fazer um filme sobre o Eusébio e sobre aquela época, enfim, um retrato do país. O Eusébio é muito mais do que o Benfica, é uma herança, um símbolo nacional», diz, contando que o clube não quis colaborar com esta produção.

António foi apresentado a Eusébio há 22 anos numa gala do jornal A Bola, pela mãe. O realizador nunca esquecerá: «Quando me apertou a mão disse­‑me que o meu avô era um homem excelente! Fiquei a tremer… aquele deus, aquele ídolo a falar do meu avô! Agora paro e vejo que é surreal ter feito um filme sobre ele! Cada vez que vejo a parte final, nos balneários, consigo pôr­‑me no lugar do espetador e fico arrepiado. Com as outras cenas é diferente: só vejo os erros.»

«Há uns filmes do meu pai com os quais embirro, mas há outros de que gosto. A Mulher Que Acreditava ser Presidente dos EUA poderia ser um excelente filme se não tivesse os últimos cinco minutos»

E como o detalhe é coisa que aqui não é matéria secundária, o guarda­‑roupa em Ruth é um dos trunfos para nos colocar em Lourenço Marques do final dos anos 1950. Um trabalho de perícia e investigação feito por uma das profissionais do guarda­‑roupa mais procuradas do nosso cinema, Lucha d’Orey, que já tinha estado no Ultramar em Cartas da Guerra, de Ivo M. Ferreira.

António ficou fascinado por estes figurinos: «Deu­‑nos muito gozo retratar aquela época. Estive com a Lucha no processo das provas com todas as personagens. As roupas são perfeitas e a Lucha tem muita experiência e quis que fosse tudo muito exato. Tivemos muitas sessões a ver fotos daquele período.» E são realmente credíveis os figurinos em atores como José Raposo, Fernando Luís, Marco Delgado ou não­ atores como J.P. Simões e Paulo Furtado/Legendary Tigerman, este último como pai de Eusébio.

O cinema de António Pinhão Botelho tem uma componente muito prática. Nota­‑se a escola americana, sabe fazer a narrativa avançar. Já se notava isso nas curtas que fez em Nova Iorque, onde praticava o tal ritmo «despachado». «Sou um tipo prático e focado, mesmo que não seja o mais talentoso dos cineas­tas. Acho que consigo arriscar, sempre foi assim. As minhas curtas, todas financiadas por mim, sempre nasceram desse conceito da tentativa e do erro. E, obviamente, não tenho medo de dizer que adoro cinema americano», diz do seu estilo.

Um estilo que está nos antípodas do cinema do pai. Curiosamente, há uns anos, confessava não ser muito fã dos filmes do pai Botelho. Agora diz que não é bem assim: «Há uns filmes do meu pai com os quais embirro, mas há outros de que gosto. A Mulher Que Acreditava ser Presidente dos EUA poderia ser um excelente filme se não tivesse os últimos cinco minutos, mas o Tempos Difíceis é muito bom. Gostei também muito do documentário sobre o Manoel de Oliveira, O Cinema, Manoel de Oliveira e Eu. Eu não tinha aquele apego ao Manoel, mas o trabalho do meu pai deixou­‑me comovido – chorei baba e ranho.»

Ruth vai chegar a mais de quarenta cinemas em todo o país e António garante sentir­‑se muito sortudo e abençoado com este projeto que não nasceu de um desejo seu.

Uma família que vive e respira cinema. O irmão mais velho, Francisco Botelho, também é cineasta e já deu provas na curta­‑metragem e a irmã mais nova, Joana Botelho, está a tentar a sua sorte como atriz em Londres, embora esteja agora a realizar obras experimentais. Como se não bastasse, Ana Pinhão Moura, produtora executiva do filme, é sua prima: «É uma vergonha, eu sei. É a máfia Botelho», brinca. E é também com um sorriso que confidencia que não se esqueceu de que já perdeu nos subsídios estatais financiamento para uma curta para o seu pai, que venceu por uma décima com La Valse, de 2012.

Ruth vai chegar a mais de quarenta cinemas em todo o país e António garante sentir­‑se muito sortudo e abençoado com este projeto que não nasceu de um desejo seu. O seu filme de sonho, no entanto, é uma muito ansiada adaptação de O Que Diz Molero, de Dinis Machado. Romancear com o passado é a sua cena. Resta não ter o azar de os jurados dos subsídios do ICA não lhe darem o financiamento em detrimento de um próximo filme de João Botelho. Aconteça o que acontecer, o cinema português ganhou um novo cineasta.

A pureza de Igor é a
majestosa simplicidade
deste Eusébio

Não gosta de dizer a idade. «Tenho a idade que for preciso para as personagens», diz Igor Regalla, mas percebemos que é jovem, apesar de estar a viver os dias mais fulgurantes da sua vida. Vai estrear­‑se em cinema como protagonista, acabou de ser também o ator principal de um filme de boxe chamado Gabriel, de Nuno Bernardo, e é um dos atores portugueses de O Grande Circo Místico, coprodução luso­‑brasileira de Cacá Diegues, presente em Cannes.

Igor Regalla nem cabe em si de felicidade. Como se não bastasse, é um dos atores da nova série da RTP Circo Paraíso e acabou de ser pai de um bebé chamado Dylan. Tudo ao mesmo tempo.

«Eusébio da silva ferreira foi um exemplo. Fazia tudo com muito amor e muita garra. Atirou­‑se à vida com tudo», diz Igor Regalla.

«Vestir esta roupa faz­‑me levar aos tempos mais fascinantes da minha tão curta carreira! Aquelas gravações em Moçambique foram tão especiais… Estar neste filme é muito mais do que aquilo que alguma vez poderia ter sonhado», diz.

Apesar de não gostar de futebol nem ter clube (o seu desporto é a Play­Station e já foi atleta de paintball no Sporting), vai confessando que a sua filiação é só uma: Eusébio da Silva Ferreira: «Ele foi um exemplo. Fazia tudo com muito amor e muita garra. Atirou­‑se à vida com tudo.»

Igor Regalla é uma revelação com um acting desconcertantemente tranquilo.