Espaço T: Tudo é possível quando a arte vai aos bairros

Texto de Sara Dias Oliveira

No meio da sala estão elásticos suspensos como se formassem um mundo onde todos cabem. Porque é elástico, porque estica. Não tardará a que as mãos sintam os nós dos elásticos e os corpos entrem nesse universo maleável. Homens e mulheres dançam, rebolam, cruzam e descruzam pernas, caem, levantam-se. À medida das suas possibilidades, à medida das suas diferenças. O ateliê de dança inclusiva, uma das componentes do projeto “Palcos para a Inclusão” do Espaço T, do Porto, vai começar. Música, por favor, para este projeto de inclusão que usa a arte para mexer na autoestima e nos afetos. Para esbater fronteiras e diluir preconceitos.

Mafalda Paiva, de 42 anos, e Sónia Moreira, de 45, são as primeiras a entrar em cena. Balançam o corpo, sentam-se no chão costas com costas, mãos nas caras. Os problemas de agilidade e de visão das duas “bailarinas” não atrapalham. Sónia recebe indicações. “Se te perderes, sem stress”, diz Sara Montalvão, professora de dança. “Se me perder, encontro-me”, responde-lhe Sónia, que dança pela primeira vez com os elásticos. “Esta dança vai ser gira. Sinto-me muito feliz, gosto tanto de balançar.” Em casa, não consegue ficar quieta quando a cunhada põe música africana. “Pergunto-lhe se danço bem e ela diz-me que sim, que danço ao ritmo da música”, conta.

Mafalda está na mesma sintonia: “Já estou aqui há um ano com a professora, gosto mesmo de dançar.” Enquanto espera por entrar nos elásticos, Paulo Costa desenha um coração numa folha. “Gosto de dar voltinhas, gosto de dançar. É magia e estou muito contente.” Carina e Sílvia também dançam, Bruno e Zé Carlos rebolam. Os elásticos tornam-se o teto de um mundo onde todos se misturam. E o ensaio termina. “Cama de gatos” é o nome desta dança que estreou no Teatro Municipal Rivoli, Porto, a 27 de junho. A inspiração partiu desse jogo antigo e universal. “É uma dança baseada no jogo, nos jogos de improvisação, em como as identidades se atravessam e se criam relações”, adianta Sara Montalvão.

Uma semana depois, na mesma sala, na sede do Espaço T, prepara-se a peça “Porque é salgado o mar” no ateliê de teatro terapêutico. Alexandra Dias, de 44 anos, será uma ninfa vestida de papoila na história que tem deuses, fadas, piratas, um moinho que cairá ao mar. Sai da cadeira de rodas por momentos, ocupa a posição no chão, verga-se sobre o próprio corpo, acorda lentamente e espreguiça-se. Os diálogos começam. Antes disso, Alexandra vai contando o que pensa deste teatro inspirado num conto de fadas.

“É uma peça muito bonita. Não vou estar na cadeira de rodas. Gosto da história.” Lá fora confessa que aprecia fazer de tudo um pouco. “Ando na piscina. Não nado, ando.” Jorge Mesquita, de 24 anos, é um dos piratas da história: “Vou fazer de pirata, eu sou pirata. Vou buscar peixe, eu vou buscar.” Luísa Valente, 28 anos, é Ariana, uma inspetora da Polícia Judiciária e espera pelo momento de entrar em ação. “Estou a achar muito interessante”, avalia sem rodeios. E o que gosta de fazer? “Várias coisas. Estar no meu computador, estar com gente. Gosto de sair.” Para onde? “Qualquer sítio”, responde. No dia em que pisar o palco a sério, a 29 de junho, no Rivoli, a ansiedade vai atacar. Luísa já sabe como é. “Antes vou estar muito nervosa, mas depois de entrar já não estou.”

A professora de teatro Sara Gonçalves fez várias adaptações ao que se conta sobre o deus Dionísio, deus do vinho, com um cenário cheio de linhas desenhadas para lembrar que Deus pode escrever direito por linhas tortas. A banda sonora tem fados e outras músicas. O fado, o destino, andar à deriva, as aventuras e desventuras de ser português. E, no final, a razão do mar ser salgado. O ensaio continua com as folhas nas mãos onde estão escritos os diálogos e as entradas e saídas de cena.

A espontaneidade do corpo
O que é o amor? Numa mesa comprida com muitos lápis de cor espalhados, 20 idosos pintam o amor na sala polivalente do Lar Santo António, na Maia, com vista para um pequeno jardim. “Quem vai fazer direito com esta idade? Olhe para os meus dedos, está tudo torto”, diz Maria do Céu Silva, de 87 anos, a Maria Rosa, de 93. À sua frente está um quadrado de papel em branco para pintar o amor. Os dedos de Maria do Céu, que trabalharam uma vida na lavoura e na costura, desenham um coração, escrevem amor de mãe, e pintam uma nuvem. “O amor de mãe é o mais puro do mundo, mas está tudo torto, tudo torto.”

Maria do Céu, de andarilho ao lado por causa dos desequilíbrios do corpo, tem medo que a memória lhe volte a falhar. A pintura ajuda-a a desanuviar. “É um excelente convívio saudável”, comenta. Alice Alves, de 82 anos, nunca gostou de pintar mas lá pega no lápis azul e desenha o seu amor pelo Futebol Clube do Porto com bolas e Sérgio Conceição. “O meu falecido era do Porto. O Porto é o maior. Vi muitos jogos com ele, fomos a Coimbra, a Braga, ao Jamor. Corremos tudo, mas agora, chapéu”, argumenta, vestida de preto dos pés à cabeça. As lágrimas enchem-lhe os olhos quando volta ao passado. Trabalhou como tecedeira 32 anos sempre na mesma fábrica, chegou a ter 14 teares para orientar, fazia hora e meia de caminho para cada lado. Aos nove anos tomava conta de crianças, deixou a escola com a terceira classe. Tempos duros.

Teresa Brito, professora de pintura, dá toda a liberdade à inspiração. O tema é o amor e tudo é permitido. Quase no final do ateliê de pintura ensina o truque do lápis aguarela: molhar um pincel em água e passar no desenho a lápis que logo fica com um ar de aguarela. O coração de Ermelinda Brito, de 79 anos, fica ainda mais vermelho com essa técnica. O seu desenho tem os nomes dos três netos e do bisneto de quatro meses, a que acrescentará o nome da filha e do genro e algumas flores a decorar. “Nem na escola era lá muito de desenhar”, atira.

A sua vida começou nos trabalhos do campo e depois foi empregada doméstica 41 anos e meio. Naquela sala as conversas cruzam-se, pedem-se lápis, diz-se que não se sabe desenhar, ri-se, olha-se para os desenhos ao lado, pede-se para mostrar o que se está a fazer. O ateliê de pintura ocupa a manhã e não há pressas ou relógios a atrapalhar. Laurinda Aurora, de 85 anos, pinta um pássaro às riscas e várias flores e o pincel dá mais brilho ao seu desenho. Há ali mão de artista. “Gosto muito de pintar mas nunca pintei”, assegura. Não parece, e na família há quem pinte. Laurinda dedicou-se à costura e há quase um ano que está no centro de dia do Lar Santo António. Para se sentir menos só. “Vou à janela e não passa ninguém, não conheço ninguém.”

Pinturas feitas, pinturas metidas em caixas de madeira como se fossem molduras. Há satisfação no ar naquela manhã em que a chuva não pára de cair. Os desenhos são guardados para uma exposição que deverá abrir ao público no próximo ano.

A poucos quilómetros começa outro ateliê. No Centro Comunitário do Sobreiro, na Maia, Alexandre Corazza dá uma aula de tai-chi aos mais velhos. Georgete Sousa, de 86 anos, ouve com atenção o que tem de fazer. Os braços são nuvens que andam de um lado para o outro ou asas que querem voar. Mãos no peito, respirar, relaxar. Música calma e uma roda de gente com mais de 70 anos que faz tai-chi. Os braços movimentam-se e parecem dançar uma valsa. “A saúde depende do movimento do corpo”, refere o professor. Georgete, de chapéu e lenço ao pescoço, concorda e faz os exercícios. “Gosto de fazer ginástica, sinto-me bem, havíamos de ter mais vezes coisas como estas”, comenta Teté, como é conhecida.

Viúva, com dois filhos, foi modista numa altura em que se compravam tecidos e não havia prontos-a-vestir. Chegou a costurar vestidos de noiva. Agora para não estar sozinha em casa frequenta o centro de dia de Silva Escura. Tal como Natividade Rua, de 75 anos, de chapéu e colar de pérolas, que experimentou tai-chi pela primeira vez. “Não faço muita ginástica, mas achei bem, ajuda a descontrair. O importante é não desistir porque estar fechada em casa não dá.” António Silva, de 81 anos, também se estreia no tai-chi. “O que fiz aqui é diferente do que se faz no lar, é mais descontraído, faz-se de outra maneira. Devia ser assim todas as semanas”, confessa quem passou uma vida como ajudante de trolha e a polir metais.

Durante uma hora, o professor Corazza investiu no lado mais terapêutico do tai-chi e subtilmente trabalhou práticas respiratórias para ajudar, explica, a “descobrir a espontaneidade do corpo e a amplitude do movimento”. Devagarinho, ao ritmo de cada um. “Para sairmos deste universo pequeno e completamente compartimentado”, acrescenta. Depois da aula, um lanche na espaçosa sala do centro comunitário instalado numa antiga escola primária. Bebe-se chá ou café com leite, comem-se bolinhos. Mário Figueiredo, diretor deste centro comunitário que pertence à Misericórdia da Maia e presta apoio a 1 200 pessoas, desde crianças a adultos desempregados e idosos sozinhos, realça “o dia diferente. Movimentar públicos é sempre ótimo.”

Galerias de arte, o orgulho dos bairros
João, Artur e Luís, três alunos do Espaço T, e a professora Filipa Duarte, dançam na sala polivalente da Associação Nova Aurora na Reabilitação e Reintegração Psicossocial (ANARP), no bairro de Santa Luzia, no Porto, que tem berçário, creche, ATL, e ainda trabalha com doentes mentais. Ao redor, sentadas e em silêncio, estão 60 crianças do pré-escolar, dos três aos cinco anos. “É uma dança sobre o Dia do Ambiente. É uma floresta que criámos juntos”, adianta Filipa, antes de se ouvir a música com sons da natureza, incluindo pios de pássaros. Uma dança contemporânea com gestos fluidos, com olhos que de vez em quando se viram para o céu e mãos que, por momentos, simulam que regam flores. A dança termina, as crianças levantam-se e respondem ao desafio de fingir que são animais. A girafa, o tigre, o pinguim. Mara Costa, de cinco anos, faz de conta que é uma tartaruga. “Já toquei numa”, garante. Joana Pereira, também de cinco anos, gosta de golfinhos. Luana gostou da dança dos adultos e Guilherme tem um cão chamado Fuji e é dele que se lembra quando tem de dançar um animal.

“Palcos para a Inclusão” é um projeto do Espaço T – Associação para Apoio à Integração Social e Comunitária, do Porto, que leva os seus ateliês de dança, teatro, pintura, canto, música, fotografia e tai-chi a 40 bairros do Porto, dez da Maia, dez da Trofa. Em simultâneo, traz gente de quase uma centena de instituições, de escolas a coletividades, de centros de dia a espaços de reabilitação, a sua casa, um edifício remodelado na Rua de Vilar. A vontade de disseminar o trabalho dos ateliês e abrir as portas de casa surgiu numa das conversas do Fórum dos Cuidadores do Espaço T, que se reúne duas vezes por ano. Ideia aprovada, candidatura apresentada, projeto apoiado.

O trabalho começou. Levar arte a bairros sociais, criar sinergias com cidades limítrofes, estabelecer parcerias com perto de uma centena de instituições. “Os nossos utentes andam felicíssimos e as pessoas percebem que há gente com mais problemas e que fazem coisas”, refere Jorge Oliveira, fundador e diretor do Espaço T. A arte é a ferramenta maior, a maneira de diluir fronteiras e preconceitos. É o motor dos “Palcos”. “É um projeto que não está completamente fechado, pode-se recriar dentro dele, nunca sabemos o que vai acontecer em cada ação, não temos sempre o mesmo público, e o facto de envolvermos muita gente permite criar graus de felicidade muito grandes.”

Trata-se de um projeto muito participativo, em que todos os elos da cadeia têm de funcionar. Além do trabalho diário dos ateliês haverá três festivais de teatro e dança e um livro sobre os resultados alcançados e o retorno social obtido. A extravasar os objetivos dos “Palcos” está o desejo de criar 60 galerias de arte nos 60 bairros: “Seria uma forma de sustentabilidade. Por que não criar roteiros turísticos? Era uma chave para abrir os bairros à cidade”, sublinha o responsável. E mais do que isso: “As galerias de arte poderiam ser o relicário, o orgulho do bairro, espaços para onde todos contribuíssem e do qual cuidassem.”

E o que mais ficará depois de maio de 2020? Jorge Oliveira espera que as sementes lançadas à terra cresçam, que os bairros permaneçam recetivos à arte como um processo terapêutico, que os ateliês continuem a sair do Espaço T. “E vamos conseguir contribuir um bocadinho para uma leitura diferente dos bairros. A arte também é um bom mecanismo de criar empatia entre as pessoas, de pôr toda a gente a pensar em conjunto”, conclui. Essa também é a essência dos “Palcos para a Inclusão”.