Perda gestacional: não são só as mulheres que sofrem

Texto de Sofia Teixeira | Fotografia de Shutterstock

«A perda não foi só dela. Foi nossa», diz Marco de Jesus, 47 anos. Abre assim a resposta à pergunta enviesada que lhe colocámos: «Como viveu a perda gestacional da sua mulher?» – o que só mostra que, nem mesmo quando queremos expor os preconceitos dos outros, conseguimos largar verdadeiramente os nossos.

A pergunta está errada porque a perda não foi da mulher, foi dos dois, e está errada porque o que perderam não foi uma gravidez, foi um filho. «É um lapso frequente e que causa-nos um sentimento de que somos esquecidos. É por isso que é importante dar a cara, só assim conseguimos que respeitem a nossa dor», completa Marco.

«No momento da perda, os homens procuram apoiar e proteger as mulheres, camuflando a sua própria dor», diz Sandra Cunha psicóloga

Foi em 2007, a mulher estava grávida de dez semanas, estavam no hospital. Ouviu dois médicos comentarem a falta de batimentos cardíacos. «Disseram que a gravidez estava desvitalizada, que é como os médicos dizem.»

Mas o que para os médicos é uma categorização definida nos manuais de especialidade como «a morte do produto da conceção, antes das 22 semanas de gestação, sem abortamento espontâneo» pode ser para os pais perder um filho desejado.

Sandra Cunha, psicóloga e presidente da Associação Projecto Artémis (A‑PA), que dá apoio a pais e mães que passaram por uma perda gestacional, garante que os homens têm um instinto de proteção.

«No momento da perda, procuram apoiar e proteger as mulheres, camuflando a sua própria dor. Evitam falar no assunto, ao contrário delas, porque consideram que se não falarem sofrem menos.» E se Sandra sabe isto, não é apenas pelos anos de trabalho na associação que em 2005 ajudou a fundar.

Era ela que, em 2007, grávida de dez semanas e acompanhada do marido, Marco de Jesus, estava a ouvir aqueles dois médicos falarem da sua gravidez desvitalizada. Após dois anos de trabalho a dar apoio a estas situações, passou pelo mesmo, o que a ajudou a compreender ainda melhor os casais que enfrentam esta perda.

«O que acontece muitas vezes é que o processo de luto é feito pelas mulheres e, quando elas atingem uma estabilidade emocional, acabam eles por desabar. Às vezes nem entendem bem porquê. Mas, após análise, entende-se que é um luto tardio», conta Sandra Cunha, com base na sua experiência e na que vem dos livros e do apoio que dá a famílias nestas circunstâncias.

A psicóloga e investigadora Bárbara Nazaré, que colaborou com a Unidade de Intervenção Psicológica da Maternidade Dr. Daniel de Matos, em Coimbra, e é atualmente professora Auxiliar da Escola de Psicologia e de Ciências da Vida da Universidade Lusófona, começa por explicar que tanto a sua experiência clínica como a maioria da investigação científica têm por base a experiência feminina e não a masculina: as mulheres mostram mais tendência do que os homens tanto para solicitar acompanhamento psicológico como para participar em estudos sobre este tema.

Dos dados disponíveis sobre a experiência masculina sabe‑se que as manifestações de luto costumam ser menos frequentes, menos duradouras e menos intensas. Mas há outros dados interessantes: «As manifestações de sintomatologia traumática – que se relacionam com o facto de a perda de um filho ser inesperada e chocante – e que se manifestam, por exemplo, na tentativa de não pensar na perda e em imagens intrusivas do sucedido, em dificuldades de concentração e em raiva, tendem a ser mais notórias do que as manifestações de luto.»

Ou seja – apesar de isto não ser exclusivo dos homens, eles tendem a calar, a não demonstrar tristeza, a não fazer o luto, e isso acaba por se manifestar noutro tipo de sintomatologia. Porque não manifestam muitos homens o seu luto?

Os estudos feitos sobre a perda gestacional mostram, sem surpresa, que quanto mais avançada está a gravidez maior é o sentimento de perda e o choque.

«Há diferenças nos papéis sociais de género, com as caraterísticas mais instrumentais, como racionalidade, associadas aos homens e as mais expressivas, como a sensibilidade, atribuídas às mulheres, há ainda a considerar o facto de os homens percecionarem como seu dever prestar apoio à companheira, preferindo não a sobrecarregar com o seu próprio sofrimento e, por fim, por não verem abertura da parte da sua rede social – familiares, amigos, até profissionais de saúde – à partilha das suas emoções relativas à perda.»

Contas feitas, Bárbara Nazaré defende que isto levanta a possibilidade de que os homens não são menos afetados pela perda do que as mulheres: simplesmente, não demonstram abertamente o impacto da perda.

Este mutismo masculino torna difícil encontrar homens que queiram fazer ouvir a sua voz sobre o tema. Por isso, Rui Mendes, de 36 anos, é um caso atípico: ele quer falar da filha que perdeu, não quer que seja esquecida. Foi há três anos e meio que ele e a mulher, Patrícia Nobre, se dirigiram à urgência «grávidos» de Alice, com 32 semanas e três dias.

Patrícia ia inquieta com a ausência de movimentos da filha, mas nada preparada para ouvir a má notícia. Diz que foi o médico que disse ao marido, mas Rui conta uma história diferente: «Foi a Patrícia que me disse. Quando entrei na sala, no meio do choro e numa enorme aflição, ela disse “A nossa filha morreu”.»

«Nunca se esquece uma filha que tivemos nos braços», diz Rui

Os estudos feitos sobre a perda gestacional mostram, sem surpresa, que quanto mais avançada está a gravidez maior é o sentimento de perda e o choque. Rui sentiu‑se anestesiado. Durante os sete meses anteriores já se tinha tornado pai. «Imaginamos como será. A morte não se equaciona.»

Alice nasceu de parto normal. Rui viu‑a nascer, conheceu‑a, pegou‑lhe ao colo, deu‑lhe beijos. «Para alguém que nunca passou por isso pode parecer mórbido, para mim foi natural. Acho que foi a minha melhor decisão, não sei como estaria se não o tivesse feito. Como poderia permitir que ela fosse enterrada sem a conhecer?»

Só nos dias seguintes tomou consciência do que se perdeu: da vida que não teve oportunidade de ser vivida, do choro que nunca será ouvido, dos sorrisos que nunca serão vistos. «Saímos da maternidade para o funeral, e depois para casa sozinhos. Além da tristeza, só sentia revolta.» Os tempos que se seguiram foram complicados.

A reação das pessoas não ajudou. Rui perdeu a conta às vezes que ouviu «Foi vontade de Deus, foi melhor assim, alguma coisa estava errada com a menina» ou «Logo têm outro filho e esquecem». É certo que o nascimento de Vicente, agora com 18 meses, trouxe alegria aos dois, mas um filho não substitui outro. «Nunca se esquece uma filha que tivemos nos braços.»

Com a distância e o tempo consegue compreender os comentários: as pessoas não sabem o que dizer. Mas, ainda hoje, tudo o que não quer é que lhe peçam para esquecer. «Eu quero falar da Alice, quero que o mundo saiba que ela existiu. É certo que só eu e a mãe a conhecemos, mas enquanto formos vivos, a Alice vive na memória de alguém. Eu tive dois filhos, a Alice e o Vicente.»

AOS PROFISSIONAIS DE SAÚDE…

A PERDA GESTACIONAL não é um fenómeno raro. Estima‑se que ocorra entre 15% e 20% das gestações clinicamente diagnosticadas, atingindo até 30% das gestações com diagnóstico bioquímico, ou seja, com um teste positivo.

Sabe-se que a forma como são transmitidas as más notícias e os momentos seguintes a essas comunicações são essenciais no processo de luto e aceitação. Não havendo fórmulas mágicas, há regras a respeitar.

«Emocionalmente, há um investimento enorme numa gravidez. É fundamental que respeitem a dor dos pais e que, ao comunicarem, entendam que é um filho, tenha oito ou 39 semanas de gestação», recomenda Sandra Cunha, da Associação Projecto Artémis. Frases como «era só um feijãozinho» ou «isso ainda não era nada» corroem, «ficam na memória e doem».

ÀS MULHERES…

O mais frequente é serem as mulheres a manifestar um sofrimento mais intenso e mais prolongado, não só, mas também, porque houve uma perda e um processo físico. «São também as mulheres que têm mais tendência para apresentar reações de luto clinicamente significativas. No entanto, trata‑se de uma tendência e não de uma regra», alerta a psicóloga Bárbara Nazaré.

Será importante que as próprias mulheres fiquem atentas à forma como os companheiros estão a lidar com a situação, de forma a poderem sugerir um grupo de apoio ou acompanhamento profissional quando se justifique.

DIREITOS PERANTE A LEI

Caso a perda gestacional ocorra antes das 20 semanas de gestação, a mulher tem direito a um subsídio que tem uma duração que pode ir de 14 a 30 dias, consoante recomendação médica, e pago a 100%, caso tenha pelo menos seis meses de descontos. O pai não tem direito a nada.

Após as 20 semanas a lei já considera a situação como nascimento de um nado‑morto, pelo que a mulher tem direito à licença parental com limite de 120 dias e o pai tem direito apenas aos 10 dias úteis obrigatórios, seguidos ou não, também pago a 100%.

Caso haja necessidade de acompanhamento e assistência à mulher – sobretudo após a perda gestacional antes das 20 semanas, que não confere tempo de dispensa ao homem –, as suas falta ao trabalho, esclarece a Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE), podem ser enquadradas no âmbito do artigo 252.º do Código do Trabalho que determina que o trabalhador tem direito a 15 dias por ano para assistência a membro do agregado familiar. Estas faltas, no entanto, apesar de justificadas, determinam perda de retribuição.