Rui Cardoso Martins

A reboque de um reboque

Depois, com um golpe de joelho e uma torcedura de algemas nos pulsos, espalmaram-lhe a cara no chão. Eurico tem corpo de defesa central de futebol. Atlético, pernas de saltar um metro de altura na área, testa de cabeceamento, mas foi dominado por dois polícias municipais num passeio de Lisboa. Há uma pergunta a fazer a Eurico (se for verdade a acusação): como é que se lembrou de estacionar naquele sítio, onde é que tinha a sua cabeça defensiva? Como Eurico não quis falar no julgamento, começou um guarda a puxar pela memória:

– Sei que foi perto do jantar e que foi Outubro… ou Novembro, Dezembro… Sei que ainda estava há pouco neste serviço. Sei que estava uma viatura no passeio. Um BMW branco mesmo em cima do passeio e em frente do parque, um dos nossos parques para guardar carros rebocados. Ocupava a totalidade do passeio para a gente passar. Preparámos o reboque para engatar o carro. Ele apareceu, estava num café.

Estava um tempo óptimo para a prática do reboque. Mas Eurico não achou o mesmo. Segundo o polícia, gritou várias vezes:

– É uma cambada de ladrões, é o Estado no seu melhor! As finanças devem-me dinheiro.

– É este senhor que está atrás de si?, perguntou a juíza.

O polícia virou-se e observou Eurico desde a ponta dos cabelos, como se lhe fizesse um “scanner”, até aos joelhos. Confirmou:

– Sim, ele disse por diversas vezes quando eu estava a elaborar o auto de transgressão: “Cambada de ladrões , vocês não se esqueçam que sem carta de condução somos todos iguais, ponham-se a pau”.

[Estranhíssima conclusão, aliás.]

– Estas expressões foram dirigidas para si, para o seu colega, para outras pessoas que pudessem estar ali?

– Directamente para nós, virado para nós.

A advogada de Eurico andava há meses a tentar provar que Eurico falara no geral, que não se dirigira directamente a ninguém. E que os polícias o agrediram criminosamente, levando-o ao solo com o joelho nas costas, agredindo-o no chão. O guarda, no entanto, disse que ele ficara violento:

– “Não pago, levem-me preso, gatunos, as finanças devem-me dinheiro e não me pagam!”. Já não me lembro bem, mas tenho a impressão que foi o meu colega que o algemou. Juntou-se muita gente. Para segurança dele e nossa foi levado numa viatura.

A procuradora da República não acreditou na defesa de Eurico:

– É evidente que “gatunos” e “ladrões” são expressões dirigidas aos agentes. É uma expressão dirigida à honra funcional dos agentes. Já a expressão “não se esqueçam que sem farda somos todos iguais, isto não vai ficar assim”, a meu ver não é uma ameaça.

Inesperadamente, Eurico quis falar no fim:

– Por aquilo que percebi, eu estou a ser acusado pelo senhor que vinha fardado. Os mesmos que me pediram dinheiro a mais em relação ao que eu teria que pagar. E o carro não estava em cima do passeio e não estava a “estrovar” e nunca falei com este senhor!

Esta fala enterrou Eurico. Dias depois, a juíza concluiu:

– Acabou por dizer que lhe pediram mais dinheiro e, portanto, sempre discutiu com os polícias. Praticou um crime de injúria agravada, cuja pena máxima é de prisão até quatro meses e multa até 90 dias.

Pelo “grau mediano de ilicitude e de dolo” serão 70 dias de multa, num total de 350 euros. A reboque da fúria contra um reboque. Qual de vós, leitores rebocados, não pensou um dia o mesmo que Eurico? Quem na alcachofra do seu coração indignado não berrou “chulos”!

– Mas o que é certo é que há que respeitar a autoridade, coisa que o arguido não fez.

– Fiz, sim senhora!

– Agora não fala.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)