Um cantor foi famoso entrou em eclipse e faz um regresso… Digressão comum. O cantor Bertrand Cantat, estrela do rock francês, já tem uma meia dúzia de anos de regresso – concertos e discos –, mas foi uma entrevista sua numa revista que transformou o seu comeback em escândalo. O semanário musical Les Inrockuptibles consagrou Cantat na capa. Para os fãs, Les Inrocks, a revista traz no seu próprio nome, mistura de incorruptível e rock, o gosto pela vontade de chocar.
O cantor é fotografado com cabelo desalinhado e ar de poeta maldito. Cantat canta, protesta e intervém. Um dia, gritou no palco contra o grupo Vivendi, patrão da editora em que ele gravava: «Podemos ter embarcado no mesmo planeta, mas não vivemos no mesmo mundo.» Cantat é bom letrista, mas apesar de todo o seu ar de poeta maldito não é Rimbaud. Este desapareceu na Abíssinia, depois da carreira literária toda feita na adolescência; Cantat de trágico o que tem foi ter matado a murro a sua companheira Marie Trintignant, em 2003, tinha ela 41 anos e 40 quilos. Pesem o peso, porque conta quando o verbo da ação é esmurrar.
Marie começara a ser atriz aos 4 anos, num filme realizado pela mãe, Nadine Trintignant, em que a estrela era o seu pai, Jean-Louis Trintignant, então um dos mais famosos atores franceses. O filme chamava-se Mon Amour, Mon Amour, o que se calhar não tem nada que ver com o que aqui se conta. Mas voltando ao que aqui nos traz: um dia, Nadine escreveu uma carta. Esta dizia: «Marie, mon amour, tu frequentas as minhas noites.» Escreveu-a depois de a filha ter sido morta a murro.
Aconteceu por acaso em Vilnius, na Lituânia, o que também conta. Lá, no código penal existe «crime passional». Crime por amor irracional, com atenuantes, pois. Cantat foi condenado a oito anos, passou preso três e foi solto. Daí o regresso em várias fases. Uma das fases foi ter a sua atuação no festival de Avignon, por acaso numa noite em que também estava programado Jean-Louis Trintignant. Este não apareceu – sabem, a falta de uma filha pode doer, são murros lá dentro, durante muito tempo. Enfim, Cantat foi recuperando a sua integração na sociedade, depois de ter pago o que devia à sociedade.
Até à capa de Les Inrockuptibles. O que talvez passasse sem dor de maior, senão, caso passassem por um quiosque, a Jean-Louis e a Nadine Trintignant. A capa da revista e os textos eram dedicadas a Bertrand Cantat, herói maldito, vítima da sua paixão. Marie Trintignant não era escrita, só aparecia evocada como um fantasma nos poemas românticos e trágicos. Título que rasgava as duas primeiras páginas: «Acabamos sempre por nos encontrar face a nós próprios.» O sujeito é ele, Cantat. Oh, destino cruel…
A tal capa iria ser só mais um degrau no regresso de um ídolo, em parênteses depois de um percalço. Mas houve um mero acaso. Tão acaso que era assinalado como simples notícia naquela edição de Les Inrocks: em Hollywood, um produtor de cinema, Harvey Weinstein, era acusado de violações e abusos a mulheres. Quando a revista saiu, era ainda notícia, dias depois era um tsunami.
Estranho este mundo moderno, a indignação contra a revista surgiu pela coincidência com um caso alheio. A ministra francesa da Igualdade, Marlène Schiappa, tuítou: «Por que raio temos de suportar a promoção daquele que assassinou Marie Trintignant a murro?» A mulher do presidente, Brigitte Macron, associou-se ao protesto. A revista Elle fez capa com a foto da assassinada e o título: «Em Nome de Marie» (o título da capa de Les Inrocks era: «Cantat em seu nome»).
O espanto é: porque foi preciso o caso Weinstein? Basta uma descrição clínica: murros fortes numa cara frágil, cara que fica roxa, com o nariz rebentado, coma e morte. Não chega por si só, precisa de boleia para a indignação?