Lembro-me de há uns tempos um jornal ter na primeira página algo como: «Faço a vontade de Allah.» Uma parangona que não funcionaria se o termo «Allah» estivesse traduzido para português. Qualquer líder cristão poderia dizer, sem que isso fosse notícia: «Faço a vontade de Deus.»
Quando tinha vinte e poucos anos, por curiosidade filosófica e religiosa, li o Alcorão, tradução da Europa-América, e encontrei a seguinte nota de rodapé:
«O termo árabe “Allah” traduz-se, em português, por Deus, venerado pelos praticantes das religiões monoteístas. A título de curiosidade, cabe ainda referir que os católicos orientais que celebram a missa em árabe (v. g. no Líbano e na Síria) chamam ao seu Deus Allah, porque o Seu nome em árabe não é outro senão Allah. Crer que o Deus dos árabes é Allah é o mesmo que acreditar ingenuamente que God é o Deus dos ingleses…»
Não faz sentido em português dizer que «Dieu» te proteja. Tal como não faz sentido em português usar o vocábulo «Allah», seja por cristãos seja por muçulmanos. Cria uma clivagem que não existe, uma vez que as três religiões monoteístas rezam ao mesmo Deus único (os muçulmanos usam o árabe como língua litúrgica, mas só nesse contexto é óbvia a utilização de «Allah» sem que a palavra seja traduzida).
Sobre o uso arbitrário da designação «Allah» como «Deus dos muçulmanos» – levando a crer que estes acreditam numa divindade diferente da dos cristãos como se não fosse o mesmo Deus de Moisés e de Jesus –, num livro coordenado por M. Adamgy e L. Madureira cita-se o documento do secretariado do Vaticano para os não cristãos, que insiste neste ponto: «É inútil sustentar com alguns ocidentais que Allah não é verdadeiramente Deus! Os textos conciliares fazem justiça sobre tal asserção. As frases seguintes do Lúmen Gentium definem de forma exemplar a fé islâmica em Deus: “Os muçulmanos que professam a fé de Abraão adoram connosco o Deus Único, Misericordioso, Futuro Juiz dos homens no Último Dia… “»
Acrescenta-se ainda no mesmo livro mencionado acima uma nota do texto do Vaticano: «Allah é a única palavra de que os cristãos de língua árabe dispõem para dizer Deus.»
É apenas um exemplo de como se criam abismos culturais, sociais, religiosos, difíceis de superar, seja na vida quotidiana seja nos órgãos de comunicação social. Há demasiadas pessoas a focarem-se nas diferenças em vez de notarem os pontos em comum. Um deles seria, em Portugal, falarmos português. Só para começar.
Que God vos ilumine.
[Publicado originalmente na edição de 26 de fevereiro de 2017]