Choveu com fartura. Não sei quanto tempo durou aquele momento, quantos minutos passaram, mas foi mais do que um aguaceiro, menos do que uma borrasca. O suficiente para ficarmos molhados mas não encharcados. Quando o carro funerário parou e a grande porta traseira foi aberta para fazer deslizar a plataforma de metal onde estava o caixão, o céu de chumbo desfez-se em água. «Raios, logo agora?» Ninguém o disse, mas todos o pensámos. Eu pensei. Uns abrigavam-se apertados sob os chapéus de chuva que tinham ido a correr buscar aos carros, os homens mais velhos, encostados ao grande muro branco do cemitério, tinham voltado a cobrir as cabeças com as boinas que haviam tirado em respeito pelo morto que nos tinha levadi ali. Os restantes tinham a esperança que aquilo passasse depressa.
Na minha família, carregamos o caixão de quem parte. Não precisamos de o fazer, entre os funcionários da agência funerária, os coveiros do cemitério e as mãos amigas que estejam por perto, há sempre quem possa transportar a urna. Mas não é a mesma coisa. Não está escrito, não há nada que nos obrigue. Mas é assim que se faz. Levamos os nossos. Foi assim que sempre vi. Foi assim que fiz com a minha avó Amélia. E com a minha tia Isabel. E com o meu tio João. Foi assim que fiz com a Susana. E naquele dia, naquele início de tarde de fim de março, quando o céu caía sobre as nossas cabeças, foi assim que fiz com o meu tio Tó. Eu, os meus primos e as mãos que se juntaram para transportar o caixão pela terra enlameada.
Pela tradição cristã, os cemitérios continuam a ser os locais onde, além de deixarmos os nossos mortos, voltamos para os chorar. Pela necessidade de um espaço físico, confinado a muros altos, onde a dor se materializa. Choramo-los na nossa cabeça, nos nossos corações, nos espaços que partilhámos com eles, mas também no local onde deixamos os seus corpos. Apesar do aumento anual do número de cremações – as cinzas em vez da terra, os fornos em vez dos cemitérios – vai continuar a ser assim por muito tempo. Os nomes, datas e fotografias nas lápides, a eterna saudade gravada na pedra, o desejo que descansem em paz desenhado a cinzel, tudo isso continua a carimbar a dor naqueles locais.
Um dia, vamos conseguir falar melhor sobre a morte. Olhar nos olhos uns dos outros e discuti-la, debatê-la, desmontá-la. Um dia, não sei bem se no meu tempo de vida ou das minhas filhas, vamos ser capazes de falar da morte e da dor e do luto sem a carga que eles hoje têm. Um dia, vamos ser capazes de falar da tristeza sem ficarmos ainda mais tristes. Vamos é ficar tristes juntos. E seremos capazes de dividir a tristeza entre todos, não para que passe mais depressa, mas para que passe melhor.
Não significa que vamos sofrer menos. Ou que vamos acelerar o tempo de luto. Ou que não vamos respeitar o espaço de que cada um precisa para estar triste e vazio e perdido e desorientado e revoltado – e todos os outros estados de espírito por que uns passam e outros não, nas várias fases do luto identificadas pelos psicólogos. Não vamos deixar de nos emocionar ao ouvir o Adagio para Cordas do Samuel Barber ou a Missa de Requiem de Verdi ou o Requiem em Ré Menor de Mozart. E, sobretudo, não vamos chorar menos. Mas vamos conseguir, espero, secar melhor as lágrimas uns dos outros.
Com tanta inteligência emocional que vamos desenvolvendo, um dia passaremos a olhar para a dor da morte com olhos de partilha e não com olhos de quem não sabe o que há de dizer ou fazer. Um dia, em vez de não sabermos o que fazer com as mãos, vamos conseguir estendê-las melhor em direção ao outro. O meu abraço pelas tuas lágrimas. Trocamos? Ou melhor, partilhamos? Lembrei-me disto tudo naquela tarde em que o céu desabou sobre nós num cemitério de uma aldeia da Beira Baixa. Um mês depois, consigo escrever sobre isto. Um dia vou conseguir falar. Independentemente, claro, das muitas saudades que tenho do meu tio.
Para a Fati e para o Jorge. Para a Madalena e para a Carlota. Para o Afonso. Para a tia Lisete. Para a minha mãe.
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Editada. A versão original foi publicada na revista em papel a 7 de maio 2017.