A noite era um túnel negro de ruído, um turbilhão de pensamentos sem nexo e sem fim. Enroscava-se sobre si própria e entregava-se à dormência de não sentir, treinada em enganar horas de um sono intermitente. De manhã convencia-se de que a luz varria as sombras e quando alguém que não via há muito a cumprimentava, ou quando o olhar cinzento colocava perguntas na boca dos amigos, sempre a mesma resposta,
– Está tudo bem, vamos andando.
Volta e meia as notícias em letras gordas nos jornais. «Cerca de quatrocentos mil portugueses sofrem de depressão em cada ano.» «Ansiedade ou depressão afeta vinte por cento da população portuguesa.» Comovia-se com a dimensão dos números. Espantava-se com a quantidade de pessoas que caíam nesse buraco sem fundo.
(Os outros, nunca ela.)
Havia dias parados. Irreais. Em que as palavras flutuavam desconexas à sua volta. Ia acenando com a cabeça a comentários que se perdiam antes de os ouvir. Sorria automaticamente, personagem de um filme cujo enredo não controlava. Corria para casa, entregue ao torpor das horas. A tentar reencontrar o cruzamento em que se tinha perdido. Segura de que dentro de si tinha todas as forças necessárias para coser os pedaços de alma partidos.
– Está tudo bem, vamos andando.
Publicava pratos coloridos e sorrisos de fim de tarde no Instagram. Percorria o mural de Facebook e preocupava-se com os desabafos de amigos. Comentava, interagia. Frases de circunstância à distância segura de um ecrã. E nunca se questionava sobre a quantidade de amigos com que contava. A solidão era uma palavra que nunca a tinha atormentado. Era uma coisa de gente que usava as redes para se compensar das suas próprias fragilidades. Para tentar a via da superação respondendo a correntes e a desafios inqualificáveis. Como a Baleia Azul, essa loucura sem explicação que assustava os colegas com filhos e escrevia manchetes ansiosas. Os jogos perigosos eram coisa de funâmbulos em risco permanente de queda.
(Os outros, nunca ela.)
Aprendeu a viver sem demasiadas perguntas. Sentia cada milímetro de desconforto colar-se à pele como uma inevitabilidade. E multiplicava estratégias para se convencer a si própria de que não doía. Cada vez lutava menos. Ou se irritava menos. Mas também cada vez chorava menos e isso pareceu-lhe bom. Levantar, vestir, trabalhar, congelar o sorriso. A rotina torna-se fácil quando deixamos de a questionar.
– Está tudo bem, vamos andando.
A certa altura já não dormia e passava o tempo em permanente sobressalto. Mas mesmo aí a segurança de sempre. Era uma fase. Haveria de passar. Não se rendia. Não pensava em falar com o médico. Recusava firmemente tomar fosse o que fosse para dormir. Escandalizava-se com as estatísticas assustadoras: 7, 9 milhões de embalagens de antidepressivos vendidas em 2016. Um número demolidor de pessoas incapazes de se empurrarem a si próprias.
(Os outros, nunca ela.)
Não soube explicar o que fez a diferença quando percebeu, pela primeira vez, que queria responder «Estou bem» sem ter de mentir. E que não há fraqueza nenhuma em estender a mão para permitir que nos ajudem a levantar. A pergunta foi feita da mesma forma de sempre e preparava-se para a resposta morna e inconsequente. Quando, de repente, sentiu que aquelas palavras feriam como punhais.
– Vamos andando é pouco, é pequeno, é prisão. Ninguém deve conformar-se com costuras tão apertadas.