Texto de Sara Dias Oliveira
Uma campanha com fotografias de sapatos e modelos despidos. Paulo Gonçalves, diretor de comunicação da Associação Portuguesa dos Industriais de Calçado, Componentes, Artigos de Pele e seus Sucedâneos (APICCAPS), no Porto, ouviu três vezes a mesma pergunta. «Mas tens mesmo a certeza?» Manuel Carlos, então presidente da associação do setor, tinha dúvidas. Paulo respondeu que sim. Tinha mesmo a certeza. E escutou o pedido: «Então, por favor, bom gosto.» E em novembro de 2010, na sessão fotográfica da campanha para 2011, no estúdio do fotógrafo Frederico Martins, num prédio do final do século XIX no centro do Porto, com vista para os Clérigos e o rio Douro, nascia o slogan «Portuguese Shoes – The Sexiest Industry in Europe». Assim mesmo, em inglês, para passar a mensagem, sempre com a internacionalização debaixo de olho. E dos pés.
Naquele dia, um homem e uma mulher despidos, modelos profissionais, posavam com sapatos nas mãos para a objetiva de Frederico Martins e, numa conversa casual sobre quão poderosas eram aquelas imagens, a palavra sexy soou na cabeça de Paulo Gonçalves. Foi o início de uma caminhada.
Hoje, sete campanhas depois, as exportações aumentaram 55%, de 1200 milhões em 2009 para quase dois mil milhões em 2016, o preço médio do sapato português subiu 30%, surgiram trezentas novas marcas, conquistaram-se mais de trinta novos mercados, criaram-se mais nove mil postos de trabalho e 200 empresas nos últimos cinco anos. No ano passado, 81 milhões de pares de sapatos saíram de Portugal, mais 3,2% face a 2015.
«A campanha de 2011 é muito agressiva, foi a terapia de choque que precisávamos fazer», diz Paulo Gonçalves, na APICCAPS há 18 anos. «Muito agressiva, muito ousada, foi o início de uma caminhada. »
Em 2010, a associação do setor, fundada em 1975, atualmente com cerca de 500 associados, sentia que tinha chegado a hora de conquistar a confiança dos industriais. Já tinha algum merchandising como calçadeiras e latas de graxa, mas isso não chegava. «Sentíamos necessidade de agitar os mercados, agitar as águas. Tínhamos de ser agressivos, ousados, ter bom gosto, sem cair em nenhum cliché. Era uma grande ambição.» Depois dessa sessão fotográfica numa sala de chão de madeira escura com tetos trabalhados, nada poderia ficar como dantes. E não ficou.
Uma das imagens de 2011 foi escolhida pelos Correios de Portugal para um selo da sua coleção. E as campanhas da indústria mais sexy da Europa continuaram a ousar, a chamar modelos profissionais, a tentar colocar o sapato nacional no topo do mercado internacional. «Colocámos o design como elemento central da nossa estratégia», diz o diretor de comunicação. «Portuguese Shoes: Design By Future» tornou-se um símbolo estampado em todo o material da APICCAPS e a expressão «The Shoes Must Go On», marca entretanto registada, é dita com frequência.
A APICCAPS continuou a pôr as pernas ao caminho e a equipa, que ousou ser ambiciosa, permaneceu atenta. A campanha de 2013 com os modelos Sara Sampaio e Gonçalo Teixeira em poses ousadas venceu o Prémio Europeu de Promoção Empresarial da Comissão Europeia, entre 800 concorrentes. Na final, o calçado nacional e o champanhe francês estavam frente a frente. O prémio veio para Portugal, Paulo Gonçalves recebeu-o em Vílnius, na Lituânia, em novembro de 2013. «Ensaiámos o discurso da derrota», recorda. Só que teve de subir ao palco, juntamente com Fortunato Frederico, presidente da APICCAPS, para agradecer o prémio e destacando o papel do IAPMEI.
Nessa altura, os números já sorriam ao calçado nacional: as exportações tinham crescido 21%, o preço médio do calçado tinha aumentado 25%, tornando-o o segundo mais valorizado do mundo, a seguir ao italiano.
Mas a grande mudança, nota o diretor de comunicação, não foi no fabrico. O calçado nacional já era bom. A mudança esteve na forma de mostrar a qualidade do sapato português no exterior. «Há muito tempo que o calçado nacional tinha uma qualidade inquestionável, uma capacidade de resposta ímpar. O setor tinha um bom desempenho. Mas os consumidores internacionais desconheciam as virtudes do calçado português.» A equipa tratou então de virar os holofotes para esses fatores.
Há cerca de dois meses, a APICCAPS esteve no Faial, nos Açores, para mais uma sessão fotográfica para a revista masculina Dsection, vendida em todo o mundo, e fez um vídeo. A equipa das filmagens, contratada para o efeito, pediu autorização para concorrer e as boas notícias chegaram. O filme de um manequim com calçado e roupa nacionais, com voz off em francês e legendas em inglês, está nomeado para os festivais de cinema de Berlim, na Alemanha, e de Toronto, no Canadá.
«Sem a confiança que as empresas têm tido em nós, nada disto seria possível. Acreditam, investem, inovam, tentam ser ousadas e catapultam isso para o exterior. Há aqui uma sinergia», diz Cláudia Pinto
O trabalho é, sobretudo, de uma equipa. Que reunimos para esta reportagem. Cláudia Pinto é a benjamim do grupo, tem 24 anos. Chegou à APICCAPS há quatro anos com o curso de Ciências da Comunicação. Estágio curricular, estágio profissional, escreveu notícias, geriu redes sociais, acabou por ficar no departamento de comunicação. Acompanha as produções, as campanhas, a estratégia, os planos. Gosta do processo, de como nascem as ideias que normalmente começam a germinar no ar, em viagens de avião, com revistas internacionais nas mãos. Veem o que gostam, o que não gostam, percebem o que está a ser feito em várias partes do planeta. «Selecionámos coisas de que gostamos, ideias que vamos tendo, reunimos a equipa e de uma ideia nasce outra.» Não há hora marcada para o processo criativo. «Não é aquela coisa de estarmos sentados à mesa a pensar.»
A postura da indústria tem sido essencial, um motor que alimenta ideias. «Sem a confiança que as empresas têm tido em nós, nada disto seria possível. Acreditam, investem, inovam, tentam ser ousadas e catapultam isso para o exterior. Há aqui uma sinergia», diz ela. Os números indicam, contrariando os momentos de crise, um crescimento no setor de 1245 empresas em 2010 para 1446 em 2015 e de 32132 trabalhadores para 38727 no mesmo período. Ou seja, uma subida de 20,5% em postos de trabalho e de 16% em número de empresas.
Frederico Martins, fotógrafo de moda há dez anos, autor de capas das mais importantes revistas de moda nacionais, lembra-se da primeira campanha que fez para a APICCAPS em 2009. Só pernas e sapatos, ainda sem o sexy associado, na sessão feita no hall de entrada do seu estúdio, onde agora estão duas cadeiras amarelas.
Aúltima campanha, com a atriz Victoria Guerra, feita em novembro do ano passado, também foi fotografada no seu espaço, num canto junto a uma das sete portas envidraçadas, onde há uma luz especial para fotografar. «É um trabalho criativo e muito partilhado. A campanha dos modelos nus foi uma pedrada no charco.» A ideia de internacionalizar o calçado em termos visuais esteve e está sempre muito presente.
A palavra sexy custou a entrar nos ouvidos do fotógrafo. «Não me caiu a ficha logo à primeira», confessa. Mas quanto mais ouvia, mais convencido ia ficando, até que se entranhou. Na hora de fotografar, o sexy está lá, mas não é uma obsessão. Além da qualidade estética, plástica e técnica das imagens, há coisas a transmitir. «Queremos que a mensagem seja muito clara: que o sapato português tem uma dimensão que não é tangível.» Não é aquele sapato em concreto que aparece nas fotografias. É a atmosfera que se cria e que pretende inspirar os consumidores.
Fernando Bastos Pereira, responsável pelo styling das campanhas, estava na sessão quando o sexy surgiu. Também não ficou convencido à primeira, receava que soasse um pouco piroso. Foi percebendo que podia resultar, que podia funcionar. Assume a direção criativa das campanhas do calçado nacional e nada é feito ao acaso. Manequins de topo. Sara Sampaio, Sharam Diniz, Victoria Guerra e Rúben Rua já deram a cara pelo sapato português. Nas sessões, as roupas e os sapatos são sempre portugueses e os detalhes são sempre importantes. «A roupa é sempre um suporte para o calçado, que é a estrela.»
Um dos grandes desafios do seu trabalho é evidenciar o design do calçado. «Não há uma entidade externa a trabalhar um conceito. O conceito parte de dentro da equipa e flui normalmente e isso é ótimo.» E hoje o calçado nacional tem presença semestral num editorial da Vogue italiana e em outras publicações internacionais, como na revista feminina colombiana Fucsia.
Mário Teixeira é o designer de serviço. Trabalha para a APICCAPS desde o boom de 2011. As fotografias das campanhas e as imagens dos editoriais da revista Portuguese Soul, que a APICCAPS publica há seis anos e faz chegar a 152 países, passam-lhe pelos olhos. Regra geral, fica surpreendido com a qualidade do material que lhes chega às mãos e que faz questão de respeitar. Não há muitos retoques a fazer. Defende que, nestas campanhas, o design tem de pautar-se pela sobriedade. «O design não conduz a narrativa, está ao serviço da narrativa», diz. Nem as letras do slogan abafam as imagens. O design deve ajudar a mostrar.
O designer trata também da edição inglesa da Portuguese Soul, com grandes produções de moda, as últimas páginas dedicadas à promoção de sítios e produtos portugueses, além do calçado. Começou com 80 páginas, hoje tem 200 e é vendida em banca por quatro euros. A associação soube identificar os problemas, apalpar o pulso à realidade, definir um posicionamento, criar uma estratégia.
A projeção internacional confirma que o caminho estava certo. Na última Micam, em Milão, a maior feira mundial do setor do calçado, Portugal teve a maior representação de sempre: 98 empresas responsáveis por 8000 empregos e 500 milhões de exportações.
Por ano, a APICCAPS investe cerca de 600 mil euros em imagem, 80% dos quais apoiados por fundos europeus do programa Compete 2020. Uma sessão fotográfica, com vídeos, poderá rondar os 35 mil euros. Além disso, há investimentos em revistas, anúncios, mailings, kits de imprensa, no programa de televisão que a APICCAPS tem na RTP2.
A projeção internacional confirma que o caminho estava certo. A presença de indústrias portuguesas em feiras internacionais, uma estratégia de promoção da APICCAPS, é constantemente reforçada e na última Micam, em Milão, a maior feira mundial do setor, Portugal teve a maior representação de sempre: 98 empresas responsáveis por 8000 empregos e 500 milhões de exportações.
O primeiro-ministro António Costa esteve nesta feira, em setembro passado. O ministro da Economia, Manuel Caldeira Cabral, também. «O calçado português está hoje entre os melhores do mundo e é uma marca que vende e que ajuda as empresas portuguesas a criar valor», diz o governante, sublinhando o papel da APICCAPS nesta evolução, ao saber «mobilizar o talento dos empresários para o desafio da melhoria da qualidade e para levar Portugal ao mercado global». «Portugal está a vender mais pares de sapatos, mas, mais importante, está a vender com mais qualidade, mais valor, e com base em marcas próprias que se estão a afirmar», acrescenta o ministro.
A equipa não descansa. Este ano, espera bater o recorde de 200 empresas do calçado em mais de sessenta ações promocionais nos cinco continentes. Desde 2011, as exportações aumentaram nos principais mercados do calçado nacional, mas há novas geografias conquistadas em territórios não tradicionais para este setor como China, Emirados Árabes Unidos, EUA, Austrália e Polónia. Japão, Colômbia, Chile e Peru continuam como mercados de investimento. E as ideias vão surgindo e sendo tratadas para que o calçado nacional avance ainda mais para além do lugar que já conquistou.
ATRIZ-CAMALEÃO PARA CONQUISTAR OS EUA
A campanha de 2017 do calçado nacional, intitulada Iconic, é protagonizada por Victoria Guerra. «Este ano, o desafio é mais trabalhoso mas é como a indústria de calçado: está a crescer ano após ano e temos de ser mais rigorosos e trabalhar cada vez mais», diz a atriz. A escolha de um dos rostos mais internacionais da nova geração de atores portugueses não surge por acaso. Em 2018, o calçado português vai apostar no mercado norte-americano e Victoria Guerra já entrou em dois filmes gravados nos EUA. Neste momento, as exportações para esse destino representam 80 milhões de euros.