Se ao menos os sinos tivessem tocado

Notícias Magazine

Há uma frase que anda aqui há um mês e meio a martelar-me na cabeça. Na noite de 15 de outubro, quando Portugal revivia o seu inadmissível pesadelo incendiário, houve esta mulher que me agarrou o braço com uma força que o ser humano só tem em momentos de desespero.

Chamava-se Alcinda Santos e vivia no vale da Ventosa, em Vouzela, onde nessa noite as chamas roubaram a vida a seis pessoas. Ela tinha sido a primeira a acordar na aldeia, parecia-lhe ter ouvido chuva e afinal era fogo. A sua casa ardia, ela gritou para acordar a família, e depois saiu largada a avisar os vizinhos, que eram poucos e estavam dispersos.

Ânsara, como a maioria das povoações em redor, era urbanismo em formato de estrela: ruas compridas, sem saída, que confluíam como raios para um largo central. Alcinda bem tentou salvar vidas, mas o fogo foi tão rápido que ela não teve tempo de correr cada eixo e tornar ao centro. Na madrugada a seguir à tragédia, agarrou-se a mim com uma angústia que não me larga: «Se ao menos os sinos tivessem tocado.»

Desde pelo menos a fundação de Portugal, no século XII, que o povo conhece este sinal de emergência: o toque dos sinos a rebate. Se na calada da noite viesse exército inimigo, ou fogo, ou tromba de água, ou terramoto, os primeiros a darem por isso corriam às igrejas e capelas, empoleiravam-se nas cordas que faziam badalar os sinos.

Com isso, avisavam o povo da iminência de uma tragédia – e podia até ser que só lhe dessem dois minutos de adianto, mas, caramba, às vezes isso era suficiente para as gentes se porem debaixo de uma cama, abrigaram-se numa cave ou subirem ao telhado. Dava-lhes tempo para fugirem e salvarem a vida.

«Se ao menos os sinos tivessem tocado», disse-me Alcinda e eu não consigo parar de pensar nisso. É que eu acredito num Estado laico, acho que a Igreja nada tem que ocupar missões que deviam pertencer ao Estado, mas também sei que em cada lugar onde vive gente portuguesa há pelo menos uma capela. Mesmo quando falha o café central, lá está a igrejinha inevitável, tão certa como o sol suceder à lua.

O problema é que, nos últimos trinta anos, os sinos desapareceram das torres religiosas. Foram substituídos ou por coisa nenhuma ou por sistemas elétricos que replicam as badaladas hora a hora. Quando vem o fogo, falha a eletricidade, a água, a rede de telemóvel. E, agora, também falha o sino.

Nos filmes-catástrofe de Hollywood vemos sempre um silvo de aviso das emergências. É muito parecido com a sirene dos bombeiros, que em Portugal toca nas vilas mas não chega às aldeias – que é precisamente o território da nossa desgraça.

Quase todos os países instalaram sistemas sonoros de emergência nas suas terreolas, para dar às populações aqueles dois ou três minutos de aviso que lhes podem salvar as vidas. Mas aqui não há guerras nem invasões nem catástrofes generalizadas há séculos. Até este ano.

Neste ano houve uma catástrofe generalizada a abater-se sobre o território nacional. E o Estado esqueceu-se de que era laico e que já não havia sinos nas igrejas para tocarem a rebate. Não havia silvos, não havia sinos, havia só os gritos de Alcinda a correr pelas ruas da sua aldeia.

Quantas vidas se teriam salvado, sobretudo na noite de 15 de outubro, se o povo tivesse tido dois minutos, dois minutos apenas, para se levantar da cama, sair porta fora e correr para longe das labaredas?