Quando estudava nas Belas-Artes, e porque não havia dinheiro para pagar um modelo, puseram-nos a desenhar um banco de madeira. Naquela altura, não imaginaria nada mais aborrecido do que chegar à faculdade e desenhar bancos à vista. Por isso, esbocei rapidamente aquilo que via, pousei o lápis e comecei a deambular pela sala a ver os trabalhos dos meus colegas. O professor perguntou-me se já tinha acabado o exercício. Disse-lhe que sim e ele perguntou-me se o poderia ver. Levei-o até ao meu cavalete e mostrei-lhe o esboço.
O teu banco só tem duas pernas? Respondi que, do ângulo em que estava, só se viam duas pernas, as outras estavam escondidas pelas da frente.
Ele insistiu que aquele era um banco com duas pernas. Argumentei que estava bem desenhado, com rigor, mostrava um banco visto daquele sítio em que me encontrava.
E, numa exposição, vais dizer isso aos espetadores? Que o banco afinal tinha quatro pernas, mas que do ângulo em que te encontravas só se viam duas?
Percebi o sarcasmo e perguntei:
Então o que devo fazer?
Ele, muito simplesmente:
Dás um passo para o lado.
E depois de uma pausa:
Ou inventas.
Cézanne ao perceber que nós observamos as coisas de várias perspetivas, e não de uma posição estática, abriu as portas do modernismo. O que eu tinha acabado de descobrir fora simplesmente Cézanne. E isso serviu como corolário: um passo ao lado ou a imaginação.
Mais: Cézanne, diz-nos Gompertz, «percebeu há 130 anos que ver não é acreditar: é questionar. Foi uma revelação filosófica que fez a ponte entre o final do racionalismo iluminista com o modernismo do século XX».
Foi assim que descobri a transcendência nos objetos e o facto de, em cada coisa observável, existir algo que a carateriza profundamente e que é invisível. O banco sustenta-se nas suas quatro pernas, ainda que eu somente visse duas e que a minha verdade não contivesse essa estranha ausência que define e sustenta tão bem a presença das coisas.
Quando vemos um banco, não vemos um banco, vemos uma pergunta. Por vezes com duas pernas, outras com quatro pernas. E para não sermos escravos de verdades únicas, basta-nos dar um passo ao lado ou imaginar uma alternativa.
[Publicado na edição impressa de 28 de fevereiro de 2016]