Estava a beber uma limonada na esplanada de um bairro novo de Lisboa e crianças brincavam no relvado em frente, com grande algazarra. Reparei melhor e a brincadeira tinha uma lógica: um rapaz no meio com uma garrafa de água vazia, e de cada lado dele uma fila de miúdos e, espera lá, duas adultas. Estavam a jogar à barra, percebi de repente. As duas mulheres estavam tão divertidas como as crianças e ajudavam a pôr alguma ordem no jogo em que a garrafa de plástico fazia o papel de lenço. Casais estavam sentados na esplanada, iam falando entre si e com os jogadores, trocavam comentários e risos.
Já em casa, vi no Facebook a fotografia de quatro amigos da minha infância, alguns grisalhos mas com o sorriso de bem com a vida que ainda não tínhamos conquistado quando jogávamos à barra e ao mata e aprendíamos a ser gente. Mas não é uma história de saudades, esta, é apenas o prazer de reencontrar num bairro um grupo de pessoas concentradas num jogo que nem sequer contabilizava pontuações. Estavam a gozar um fim de tarde de domingo e o espaço era convidativo. Poucos carros passavam na rua e o relvado protegia todos do perigo de alguma corrida desgovernada. Não havia televisão nem telemóveis a tocar nem caçadas de pokémons. Havia pessoas a beber limonada ou mazagran ou cerveja, crianças a comer as bolachas caseiras guardadas em frascos no balcão do café, conversas preguiçosas à toa, um grupo ruidoso a fazer pequenas batotas na barra do lenço, perdão, da garrafa, sem zangas nem birras. Era um momento de pausa antes do recomeço da semana de trabalho que daí a pouco começava.
Um fim de tarde de domingo como qualquer outro, em qualquer parte do mundo onde a vida flui sem mais percalços do que um joelho a precisar de Betadine. Um mundo onde não cabem as imagens de Omran sentado sozinho no banco cor de laranja da ambulância, coberto de sangue e de pó da casa bombardeada. Omran nunca conheceu esta tranquilidade porque nasceu no ano em que começou a destruição de Aleppo. Não quero fazer demagogia com o olhar assustadoramente inexpressivo daquela criança, seria um aproveitamento desonesto e fácil. Mas sei que mesmo na total anormalidade as crianças arranjam sempre maneira de brincar, talvez com uma bola ou uma mola da roupa, sabem oferecer a qualquer objeto uma função inesperada. Sabem fazer de conta.
Não tenho o descaramento de fazer de conta que não associei imediatamente as crianças da minha vida àquela sequência. Em Lisboa, agosto de 2016, numa tarde banal de domingo, tinha na memória o rosto de uma criança que quatro dias antes tinha ficado sob os escombros da casa onde morava com a família. Omran nasceu numa cidade milenar com uma história mais antiga e mais rica do que a maior parte das cidades do mundo, na região fértil da bacia do Eufrates, um território cobiçado por sucessivos, e ele é uma entre os dois milhões de pessoas a viver sem aqueles gestos tão banais como abrir uma torneira e ver água a jorrar, ou ligar um interruptor e acender uma luz. «Estou zangado, muito zangado», disse o responsável das Nações Unidas para os Assuntos Humanitários e coordenador do auxílio de emergência, Stephen O’Brien, quando foi ouvido, na segunda-feira, pelos 15 membros do Conselho de Segurança. Pediu 48 horas de tréguas para fazer chegar ajuda imediata. Ali, o irmão mais velho de Omran morreu no hospital em consequência dos ferimentos daquele bombardeamento.
[Publicado originalmente na edição de 28 de agosto de 2016]