Dois fatores determinantes explicam a surpreendente eleição de Trump, ontem à noite, para a presidência dos Estados Unidos: ele e nós. Ele, na verdade, era o mal anunciado que não quisemos ver. Já andava por cá há muito tempo, só que com outros rostos. Se olharmos para o resto do mundo, vemos que as personagens como Donald estão a espalhar-se como a peste. O discurso populista e anti-sistema conseguiu atirar o Reino Unido para fora da UE e conseguiu eleger líderes perigosos, como Erdogan na Turquia, Putin na Rússia e Orban na Hungria. Le Pen é favorita às presidenciais do próximo ano em França. Se até aqui tínhamos sinais de que o jogo político estava a mudar, agora temos uma confirmação incontornável e estrondosa.
Desde a queda do muro de Berlim, o capitalismo não encontrou nenhum sistema que se lhe opusesse e começou a operar em roda livre. Não estou aqui a defender o comunismo, repare-se. O que digo é que o neoliberalismo conseguiu triunfar sem contestação nem alternativa, sobrepondo os interesses financeiros aos humanos. Há trinta anos, o mundo era muito menos rico mas os rendimentos estavam muito melhor distribuídos. Hoje, um por cento da população detém metade da riqueza do globo.
A tecnologia e a globalização criaram um sério problema de empregabilidade. Neste momento, o trabalho deixou de ser simplesmente necessário. E para os trabalhadores manuais, sejam eles das zonas rurais ou das áreas industriais da América, a visão do futuro é um túnel escuro. Foram eles, e foi o medo deles, que elegeu Trump. Apesar de constituírem historicamente a base de apoio do Partido Democrata, deixaram de acreditar no establishment, de que Clinton é a representação perfeita. E por isso preferiram votar num tipo que, mesmo superficialmente, mesmo sem argumentos, se opunha às instituições que nas últimas três décadas lhes falharam.
E depois há o nosso lado da culpa. Dos media, em primeiro lugar, que estão reféns do mesmo medo e se venderam a uma corrida desesperada pela sustentabilidade. O jornalismo, cuja principal missão é dar ferramentas aos cidadãos para que eles possam tomar as suas próprias decisões esclarecidas, está hoje inundado de informação irrelevante. E os políticos com menos escrúpulos encontram hoje o seu tempo de antena aqui, nas notícias que não nos servem para nada.
Deixem-me explicar de outra maneira: sempre que nas redes sociais comentamos empenhadamente um artigo do qual não lemos mais do que o título, estamos a dar força a Trump. Sempre que usamos um artigo manipulado de uma fonte duvidosa para formar uma opinião inquestionável, estamos a dar força a Trump. E, como andamos a fazer isto todos os dias, os tipos verdadeiramente perigosos vão ganhando espaço. Quantos de nós perdem tempo a tentar perceber o que é que um orçamento de estado implica? Ou a ler uma investigação sobre negócios obscuros? Por estes dias andamos assim: lemos dois ou três títulos, formamos uma opinião sólida baseada em informações superficiais e, nas brechas do conhecimento que não quisemos explorar, aparecem políticos com posições igualmente fortes, baseadas em argumentos igualmente básicos.
Tornámo-nos críticos do sistema sem sequer lutar por ele. Deixámos de votar, de integrar os partidos, ou de propor uma alternativa a eles. E é por isso que Trump não é nenhuma bizarria que aparece não se sabe de onde. Ele é o nosso mais puro representante. É o tipo que cresceu quando nos desresponsabilizámos da Polis, quando deixámos de nos preocupar com o que lemos, dizemos e partilhamos. Trump é o triunfo das fotografias fofinhas de gatinhos, das raivas exaltadas com os refugiados que se afogam no Mediterrâneo, das teorias de que para terminar a guerra na Síria bastava bombardear um país inteiro. Trump somos nós, porque nós não quisemos saber.