Oliver Sacks escreveu O Homem Que Confundiu a Mulher com Um Chapéu e logo o título era todo um programa. Mas não era um programa de humor, como poderia imaginar‑se, porque o cientista estava realmente a falar do homem que confundiu a mulher com um chapéu em consequência de uma grave situação neurológica. Todo o livro é uma lição que se lê de um fôlego, com o prazer que dá a combinação da arte de escrever com o saber científico. Sou declaradamente fã destas pessoas que conseguem transmitir as noções mais complexas com a maior simplicidade, sem contornar o rigor científico.
O mesmo autor publicou outras obras, incluindo uma autobiografia, Em Movimento, e um outro que tem o título português Perna para Que Te Quero (todos editados em Portugal pela Relógio d’Água). Foi este último que me veio à memória hoje, o da perna ferida com gravidade num acidente. Tudo aconteceu numa das suas habituais escaladas solitárias, neste caso num fiorde na Noruega. Saiu cedo e lá foi ele vereda acima, sem pensar na hipótese de alguma coisa correr mal, num tempo em que não havia telemóveis. Foi sozinho, ansioso por descobrir o panorama que o esperava lá no cume, tal como uma vez José Saramago subiu sozinho a montanha Branca, em Lanzarote, experiência de que muito gostava de falar.
Sacks, que morreu no ano passado aos 82 anos, era um caminhante experiente e estava em ótima forma física nessa época – «forte como um touro», diz no livro. Na subida, viu um cartaz que o avisava, espantosamente: «Cuidado com o touro!» Achou a situação tão insólita que continuou a caminhar até que deu de caras com o propriamente dito animal, deitado no caminho. Pareceu‑lhe monstruoso, diabólico mesmo, pelo que entrou em pânico e na fuga caiu e ficou ferido com gravidade.
Tentou caminhar sobre a perna magoada e não conseguiu, arrastou‑se até perder as forças. Foi encontrado já de noite por alguém que foi chamar ajuda, e foi retirado numa maca transportada à mão, porque estava em plena montanha e não havia estrada. Primeiro socorrido num hospital norueguês, onde foi operado por um cirurgião bailarino (não estou a brincar, a vida tem destas coisas), foi depois transferido para Londres, onde continuou hospitalizado por longo tempo.
A história acaba bem, está visto, porque ele sobreviveu de boa saúde para contá‑la. E contou‑a muito bem, temperando a aventura com a reflexão sobre o que aconteceu e sobre o lugar do doente e a atitude dos médicos, enfermeiros e todos os que cuidam das pessoas internadas. Por um longo período, ficou incapacitado e dependente, no duplo papel de observador e observado.
Todos temos, uma ou outra vez, o impulso de correr riscos desmedidos, como Oliver Sacks e Saramago a subir montanhas sem rede de recurso, como tantas pessoas fizeram e farão. Porque a montanha está lá, como disse George Mallory perante a insistência na pergunta: porque quer escalar o Evereste?
E temos também o contrário – o medo paralisante que nos impede de pôr o pé em ramo verde, de outras perspetivas, outros lugares. Os livros, os filmes, as séries de aventuras, são feitos disso mesmo, de situações de potencial risco que nos empolgam, pela adrenalina da atração do perigo.
E há os momentos milagrosos em que escapámos por um triz da morte. É neste balanço entre arriscar e tomar cuidado que avançamos a querer chegar mais alto, a desprezar tantos avisos – cuidado com o touro! – que estão ali para nos proteger. Mas se obedecêssemos a todas as cautelas, o que seria de nós?
[Publicado originalmente na edição de 18 de dezembro de 2016]