Os objetos da vida de quem via o TV Rural

O homem do cinema e da TV acaba de lançar um «manual de memória para esquecidos». A Sebenta do Tempo faz uma viagem nostálgica, mas bem-humorada, por objetos, marcas, gente, músicas, filmes, séries e outros ícones que marcaram as últimas décadas do século XX.

Domingo de manhã, o engenheiro Sousa Veloso e o seu TV Rural seguia-se à Eucaristia Dominical e ao 70 vezes 7. Para alguns, sobretudo os mais novos, fãs da Heidi, da Pipi das Meias Altas, do Sandokan, da Anita e d’ Os Cinco, que esperavam ansiosamente pela Casa na Pradaria e até pelo mais adulto Bonanza, e à noite iam dormir quando o Vitinho os mandava para a cama, era uma verdadeira bênção dos céus. Ouvia-se as notícias das colheitas com o mesmo entusiasmo com que se fixavam os reclames publicitários e, por isso, até hoje, os glutões do Presto fazem parte do imaginário de várias gerações de portugueses, assim como o homem da Regisconta, que era «aquela máquinaaaa».

Os irmão mais velhos, malta nascida nos sixties, ouvia por essa altura (anos 1980), ingleses da pesada, como os Sex Pistols enquanto em Portugal o rock dava os primeiros passos e aparecia gente tão diferente como o Rui Veloso, com o seu Chico Fininho, ou o António Variações com uma versão futurista do «contentamento descontente» de Camões.

Na telefonia ouvíamos, nós e os adultos, [mães e avós liam a Crónica Feminina] os Parodiantes de Lisboa ou os discos pedidos e tantas vezes era da rádio que gravávamos as músicas que depois partilhávamos com os amigos em cassetes pirata.

É tudo isto que Mário Augusto nos dá em A Sebenta do Tempo. Além da recordação dos objetos, das marcas, das pessoas, dos filmes, das séries, dos livros, das guloseimas, dos brinquedos e de muito mais ícones que marcaram as gerações que nasceram entre os anos 1960 e 1980, o autor «fala» da sua relação com os mesmos – que não será muito diferente da do leitor – e conta as histórias por detrás destes.

Sabia, por exemplo, que as portuguesas pastilhas Gorila, que apareceram em 1968, vieram destronar, «por serem mais elásticas, menos duras e melhores para fazer balão», as compatriotas Pirata, fabricadas em Évora?

Ainda se lembra de como comia o Tulicreme no pão, ao lanche? E de como os lápis Viarco tinham um sabor especial quando o mordia, na sala de aula da escola primária, enquanto copiava as contas do quadro? E as esferográficas BIC? Sabia que «uma única BIC Cristal [«de escrita normal»] é capaz de «desenhar uma linha de dois a três quilómetros de comprimento, ou de preencher mais de quinhentas folhas A5»?

Depois da escola, os miúdos dos anos 1970 e 80 iam a correr ver um dos melhores amigos, que lhes apresentou a Pantera Cor-de-Rosa: Vasco Granja. O homem dos desenhos animados checoslovacos morreu em 2009, mas a notícia da sua morte ressurge de tempos a tempos, como se fosse impossível. Outro imortal era o senhor da meteorologia, Anthímio de Azevedo, que dizia todas as noites o tempo que ia fazer no dia seguinte. Foi com ele que aprendemos as altas pressões e baixas pressões, assim como o anticiclone dos Açores. Isto tudo quando 1999 parecia tão distante que se faziam séries de ficção científica chamadas Espaço 1999.

Foi ontem o ET e o Indiana Jones. E já se escrevem memórias sobre eles.


Leia também a entrevista a Mário Augusto.


capa_a-sebenta-do-tempo_ A Sebenta do Tempo – Manual de Memória para Esquecidos, de Mário Augusto. Bertrand Editora, 216 páginas, 17,70 euros.