Nós dançando, ao som da sua voz pop metálica, teremos, para sempre, 15 anos. E é isso que queremos ter, de vez em quando, para sempre.
Provavelmente acontece em todas as gerações: começamos a envelhecer quando aqueles que julgávamos eternos nos morrem. Os autores da banda sonora dos nossos verdes anos, sobretudo. David Bowie, por exemplo.
Dele até podíamos pensar que nos havia de acompanhar para sempre. E não apenas em músicas que continuam a tocar nas nossas festas nostálgicas, com os hits de sempre, em que, sem espelhos por perto, fingimos ter ainda 15 anos. Little China Girl, oh oh oh ohhhh. Let’s dance, tu-tu-ru-tu-tu-tu-tu. Nessas festas privadas em que nos reunimos, os nossos sons – não as kizombadas ácidas que enchem as novas discotecas –, um amigo a meter discos, e sorrisos de reconhecimento que nos operam, na mente e no coração, este elixir do regresso ao passado.
Mas Bowie havia de nos acompanhar para sempre, a fazer valer pela velocidade a que andava a produzir: dez anos de interregno, um disco de dois em dois. De vez em quando ele voltaria para nos surpreender. E nós, velhinhos, havíamos de pôr a mão em concha e voltar à adolescência naquela voz metálica. Jazzística, mais ou menos soturna, revolucionária. Sempre, sempre pop.
Aqueles acordes, entre o rasgar e o embalar, são a quintessência da pop. No sentido cultural e sociológico do termo. De saber lidar com o mercado massificado da música e mesmo assim meter a farpa e provocar a revolução. Ser a revolução.
Até por isso, David Bowie, sim, podia e devia durar para sempre. Para nos lembrar que nem tudo o que é pop é oco. Que nem tudo o que é massificado é necessariamente fútil. Por várias razões. Primeiro: para mostrar que se pode guardar o privado, sem que isso torne uma estrela menos estrela, ou menos importante – oh, tão difícil isso, nestes tempos de striptease social e mediático.
Ele, que se salvou do universo desgastante da atenção mediática e se recolheu à sua face privada. Não disputou as redes sociais. Manteve-se, mito e homem. Lá longe. E nem à inauguração da exposição com o seu nome do Victoria and Albert Museum, em Londres, foi. Se calhar, já estava doente. Se calhar era só por ser Bowie.
Bowie para sempre seria sempre, garantido, moderno. Não pela moda, a que sempre soube ir buscar o pano de fundo da sua música. Antes do tempo. Nunca perdendo o ar do tempo. Soube aprender com os erros, recuar, ou avançar conforme o caso – até quando revelava mais do que queria da sua vida. Até quando o pé lhe fugia muito como no final dos anos 80 – recordo um dueto horrendo com Mick Jagger, Dancing in the Street, mais tarde, em 2006, redimido num sublime Wake Up com os Arcade Fire.
Bowie devia ter durado para sempre para continuar a atirar-nos à cara a sua originalidade: sim, sê sempre tu, vai valer a pena. E nós, mais uma vez, batendo com a mão fechada, sobre a outra palma aberta, a dizer, bolas que o tipo é mesmo bom.
Como quando anunciou a sua morte com uma música em que cantava a sua ressurreição. O que ele se deve ter divertido – se ainda conseguia – por nos ver a embalar-nos com Lazarus e um sorriso nos lábios de tão bom que aquilo era, enquanto ele sabia exatamente o que nos esperava dentro em breve: a enorme dor de ficar sem ele, e sem a parte do nosso mundo que lhe cabia.
[Publicado originalmente na edição de 17 de janeiro de 2016]