Flower power

Notícias Magazine

Marta, my dear,

É bom sabê-la enamorada pelas suas flores. Leitura acabada, arrisquei um olhar de esguelha para a minha varanda. Atendendo à orientação da sala, poderia roubar frase de Remarque – a Oeste nada de novo. Ou nada de nada!, meia dúzia de ervas, tão enfezadas que hesito em rotulá-las de daninhas, não chegam para decretar aquela terra habitada. Por alguma razão os arbustos dos vizinhos já iniciaram uma invasão pacífica que não tenciono repelir…

Não foi sempre assim. Cem metros adiante, na casa em que vivi quase trinta anos, cresciam flores. Sem vida fácil, era preciso esperar os domingos para matar a sede, durante a semana sobreviviam ao meu desleixo. A campainha tocava, estridente mas inútil, a excitação da Michelle junto à porta não deixava espaço a dúvidas – minha mãe chegara. E muito justamente era a cadelita, batizada em honra de poliglota canção dos Beatles, a primeira a receber- lhe afagos e encantamento risonho, «é tão meiga». Posso estar enganado, mas durante o abraço e o «como estás, menino?» o olhar dela já vistoriava o canteiro. A censura que me dirigia tinha tanto de firme como resignada, perdera a esperança de conseguir um armistício entre mim e a varanda sombria virada a norte. Certificava-se do conforto do seu homem – leia-se manta no colo, jornais à mão e filho pronto a discutir a inevitável política… – e partia a cuidá-las.

A água era vertida com a parcimónia dedicada ao arroz de ervilhas em casa dos meus avós paternos e emoldurada por palavras meigas; ditas curvada sobre elas; afagando-as; pareciam trocar segredos. Eu alucinava queixas justas e resmungos, «não fossem estas raízes e desaguávamos em sua casa. Se não merecemos o estatuto de refugiadas, quem merece, D. Maria Clara? Desculpe, mas o seu filho trata-nos – literalmente! – abaixo de cão, que por acaso é cadela».

Agora, em Cantelães, outras flores, que a envolvem e a meu pai, recusam morrer. A chuva abundante não passa de disfarce para enganar cérebros, residentes ou de visita, mas sempre avessos a razões alheias à ciência pura e dura. E dura foi a negociação com as flores. Porque de imediato desejei trazer algumas e colonizar a varanda, disponibilizei-me para papéis assinados ou pactos de sangue que assegurassem firme jura de propiciar as condições mínimas, médias e máximas para a sua sobrevivência. Pensei ter a partida ganha, por ignorância do meu vil passado, confiança na firmeza do olhar ou cunha de minha mãe aceitaram o convite. Em abstrato… Na prática, nenhuma ponderou, sequer, abandonar Cantelães.

Poderia ter adaptado velha frase desse extraordinário Vasco Santana – bom amigo dela… –, dizer «flores há muitas» e outras comprar na cidade. Mimá-las de tal forma que crescessem o suficiente para se divertirem com os rapazinhos que jogam futebol no campo do outro lado da rua; do outro lado da vida. Mas não. A aridez da varanda simboliza a aceitação pacificada do vazio que deixou em mim. Só voltaremos a partilhar flores quando também eu repousar em Cantelães. Com a eternidade à minha disposição para saber – e merecer! – falar com elas…

Porto, primeiro domingo de maio, 2016.

[Publicado originalmente na edição de 8 de maio de 2016]