É um pequeno clique. Não. Alguém a estalar os dedos. O som de alguém a estalar os dedos. O homem nunca ouviu aquele barulho a sair de um telemóvel, mas não há dúvida sobre a origem do som. O telemóvel da mulher em cima da cómoda, ligado a um cabo e a uma tomada. O ecrã iluminado. Uma mensagem que acabou de chegar. E a mulher longe. Está perto, a poucos metros, na casa de banho, mas longe o bastante para ele poder fazê-lo. E para poder disfarçar se for apanhado a fazê-lo.
Pela primeira vez – ele garantirá que foi a primeira vez, quando pensar nisso depois, amanhã, na semana seguinte, dentro de uns meses, quando disser a um amigo –, pela primeiríssima vez, tem o impulso de esticar o dedo para abrir o envelope a piscar. Ela esqueceu-se de bloquear o ecrã e ainda não passou tempo suficiente até o aparelho o fazer sozinho. É só ele e o telemóvel. E a dúvida. A grande, gigantesca, pesada dúvida. Ver ou não ver? Abrir ou não abrir?
Não há volta a dar, depois disto. Depois de uma primeira vez, depois de se ver o que não é suposto ver – não por ser para esconder, mas porque é privado –, já não pode fazer-se o caminho inverso. Se for uma mensagem natural, inocente, de trabalho, de família, de amigos, de combinação para a reunião de amanhã ou para o jantar de sexta, o homem fica calmo. E vai apenas sentir-se com remorsos. Mas se não for nada disso, se encerrar alguma coisa que ele não percebe, não vai perceber, não vai conseguir contextualizar, não está preparado para saber… então como se faz? Se não perceber o que raio se está a passar. Só se houver outras antes. Estes telemóveis modernos têm a sequência toda. SMS para lá, SMS para cá, pergunta- resposta-nova pergunta, um diálogo a duas mãos com balões de cores diferentes. Está lá tudo. Escarrapachado. A menos que ela apague as anteriores.
Se não se despachar o telemóvel bloqueia-se e aí não há nada a fazer. É melhor ser rápido. Fazer agora, pensar depois. Por falar nisso, o que se faz depois? Se a mensagem revelar intimidade, aproximação, cumplicidade com alguém, o que vai fazer depois? Falar? Ficar calado e esperar outra oportunidade para confirmar? E se o remetente for conhecido? Se ele souber quem é, conhece-lhe o nome, a cara, até já foi lá a casa. Ou então, não. Espera.
Isso não é o pior. Pior é se ele não souber quem é. Quem é o João? O Miguel? O Pedro? Colega de trabalho? Ou alguém do ginásio? Ou daquele curso que ela está agora a tirar. Está a gostar tanto, se calhar é por isso. E se não tiver nome associado? Se não houver contacto criado para aquele número. Para não dar nas vistas, possivelmente, não vá o marido espreitar o que não devia. Não vá ele fazer o que está prestes a fazer.
Afinal, pode não ser nada disto que ele está para ali a pensar. Pode não ser nada. Nunca teve razões para achar que houvesse alguma coisa. Nunca teve pretextos, sinais, desconfianças, indícios, nada. Então porque está com esta vontade? Sempre foi pessoa de impulsos, o homem. Se está com vontade de o fazer, é melhor avançar. Onde há fumo, há fogo. E se procurar, vai encontrar alguma coisa. É sempre assim. Mesmo que o fumo seja só na cabeça dele.
Além disso, pode haver uma explicação qualquer. Há sempre uma explicação. Se calhar é isso que ele quer. A explicação. Ele precisa disso. Ele quer tudo. Quer ver a mensagem, quer saber do que se trata, quer a explicação, por mais rebuscada que seja. Por mais que a mulher meta os pés pelas mãos enquanto se perde num novelo de palavras para justificar aquilo.
Justificar o quê? E se não houver nada para justificar? É melhor estar quieto. Antes as dúvidas do que os remorsos. Ou não?
[Publicado originalmente na edição de 11 de setembro de 2011]