Marta, my dear,
Escrevo na «sua» cidade. À noite, pela janela vejo o aqueduto a caminho da ponte. Comentei uma apresentação em congresso do meu caçula, pela primeira vez «atuámos» juntos. Algum tempo atrás, o irmão convidou-me para falar num ciclo de conferências que organizou. Um psicólogo, outro arquiteto, ambos possuem talento sólido, que se apoia em trabalho árduo e não jorra de inspiração diletante. Sinto-me grato por lhes servir de pano de fundo; e mergulho no passado.
Recordo-me sentado no chão, entre as camas, debitando histórias tão estapafúrdias que o sono, enfadado, corria em socorro deles. A recusa das crianças ao império da lógica, discussão acesa quanto ao seguimento a dar ao «era uma vez…». Um amava as Terças e o outro as Quintas, tentei dividir os dias pelas noites, mas nenhum dava o desejo a torcer, esperar o amanhã é uma eternidade sem Deus para os miúdos. Ofereceram-me a solução em bandeja de prata debruada a olhos castanhos e verdes e eu concordei. Abraçavam-se às almofadas, a minha voz desafiando razão e cansaço: «Era uma vez o Mickey e o Pato Donald. E numa Terça e Quinta-Feira…»
Sebo!, tudo se junta, vociferava o Ega nos Maias e pensava eu na Estrada da Circunvalação. Ainda há pouco merecedor do rótulo de ex-deprimido e já mergulhava no de divorciado, ambos me faziam temer por eles. Estar presente, sim. Mas em que estado? Seriam os meus filhos vítimas de fogo amigo? As memórias fazem fila e mossa, o apartamento tão minúsculo que um exclamou – «parece uma caixa de fósforos!». Outro mais avantajado, com aquela humidade portuense que enternece a alma ao pintar de nevoeiro o rio, mas faz ranger as articulações ainda antes do levantar da persiana. E um deles a ver os bonecos na TV, cobertor pelas costas tiritantes e ritual estóico a cada cinco minutos – o aparelho já se reformara da reforma, de vez em quando exigia piparote valente para nos brindar com ascética imagem a preto e branco. Fazia dó e frio, saí disparado e fui comprar um baratinho mas novo, com o dinheiro que não tinha. Áreas, ali ao pé de S. Xenxo, noite caída por obrigação horária, eles por galhofeiro cansaço de dia de praia, as cabecitas espreitando à vez pela janela – o pai contemplava a ria no jardim ou desaparecera?
Os meus filhos, Marta, não se puderam dar ao luxo de apenas serem cuidados, ao mesmo tempo cuidaram do cuidador. E fizeram-no com desvelo e lealdade inultrapassáveis. Poderão os ramos escorar um tronco que deixou a insegurança tornar movediças as raízes? Podem, eles provaram-no. E por isso não me «limito» a amá-los, estou-lhes profundamente agradecido. Se os ajudei a criar, eles mantiveram-me vivo em alturas da caminhada em que me sentia um autómato quase vegetativo.
Por isso são as únicas pessoas perante as quais ainda tremo quando falo em público, pese embora o respeito que cada audiência sempre me mereceu ao longo de várias décadas. Porque minto a mim mesmo e peco – por defeito… – se disser apenas que aspiro a não os desiludir. É verdade. Mas por trás desses «serviços mínimos» rumoreja ambição megalómana – que sintam pelo pai um milésimo do orgulho que nutriam pelo avô.
[Publicado originalmente na edição de 7 de fevereiro de 2016]