Começo a ter idade que me faz lembrar agradecimentos que nunca dei. À laranja, por exemplo e evidentemente. Primeiro, foi-me um pregão: «Laraaaanja, doce!» Passava na minha rua à cabeça da quitandeira. Esta, chamada pela minha mãe, desenrolava da cintura o primeiro dos panos, o que lhe permitia dobrar-se, pousava o cesto – as mais pobres, o alguidar com o esmalte a desaparecer – e punha de lado o lenço em rodilha que amortecia o peso da fruta. «Dois angolares», anunciava, sem dizer a quantidade, a discussão era para depois. As minhas laranjas eram sempre amarelas, douradas.
As laranjas eram do Loge. Cheguei a pensar serem duma fazenda centenária, a norte de Luanda, na curva do rio Loge, ao chegar a Ambriz, na costa. O meu pai, por razões que esqueci, num dia levou-me de camião mais longe do que os cem quilómetros habituais das excursões de cacimbo, nas férias. O Bedford passou Quicabo, uma rua do faroeste, onde tudo, da bomba de gasolina à pensão, era de um compadre transmontano, e continuámos até um rio. Na outra margem vi sobrados, com telhados de quatro águas e janelas debruadas a azul-cobalto: «A Fazenda do Loge», apontou o meu pai. Ficou o lugar das laranjas, embora não tenha visto nenhuma. E devia: elas amadurecem no tempo frio, no cacimbo.
Mais tarde soube que afinal elas vinham do colonato do Loge, num vale do interior, tão longe do Ambriz como Luanda. No colonato havia brancos pobres e negros mais pobres. Estes eram tocoístas, uma igreja cristã que em 1950 fora expulsa da capital do Congo, Leopoldville. Esperavam pelo messias e faziam lenços brancos bordados em ponto cruz. Nos fins da década de 1950, cultivavam as minhas laranjas e deviam ser felizes. Na internet, ainda há uma «Maria José», branca, que pergunta ao mundo «lembram-se de mim?» e há uma tocoísta que fala dos lenços brancos. Não sei se se conheceram. As aldeias desapareceram em 1961, quando começou a guerra. E os laranjais também.
Os portugueses conhecem, pela voz de Sérgio Godinho, uma das mais belas canções de amor na nossa língua: «(…) seus seios laranja/ laranja do Loge/ eu mandei-lhe essa carta/ e ela disse que não…» É sobre o namoro de um poeta da minha terra, Viriato da Cruz, que foi morrer à China. As melhores aguarelas de quitandeiras são de um pintor da minha terra, Albano Neves e Sousa, que foi morrer a Salvador da Bahia. Nada que as minhas laranjas desconheçam, o viajar.
A minha mãe trazia as laranjas para a sala, para o centro de mesa, como flores. Na parede, sobre o frigidaire (não ponham maiúscula, era uma coisa, imperial e branca) havia a pintura A Última Ceia. Só mais tarde soube que não era o original, de Da Vinci, era uma cópia porque havia laranjas à mesa, frente a Jesus, Pedro e Filipe – sempre pensei que este se levantara para apanhar uma. Mas não, Filipe protestava por Jesus ter dito que nessa noite alguém o iria trair. E, em todo o caso, no tempo de Jesus ainda não havia laranjas em Jerusalém.
As minhas laranjas são pequenas, casca fina e dulcíssimas. Não são Valência, como as da Florida que fazem sumo em pacote, nem Navel, como as dos supermercados, sem semente e com umbigo, como o nome indica em inglês. Não estou a dizer que estas não são boas, estou a dizer que são outra coisa. As minhas têm sementes, como devem ter os frutos sem laboratório, chamam-se do Loge e já não há. Trato as que há homenageando as minhas. Mordo a laranja e descasco com os dedos – a casca grossa não merece o trabalho de cinzelador com que o meu pai fazia uma espiral sem quebrar.
Ah, e ao comer chamo-lhe sempre baixinho – porque «do Loge» é muito íntimo – «orange», porque em francês vem de ouro. Que raio de ideia chamarem laranja a um fruto cor de laranja que é amarelo (ou, pelo menos, devia ser).
[Publicado originalmente na edição de 13 de novembro de 2016]