O músico Jorge Fernando andou pelas ruas de Alfama à procura de vozes afinadas e talentos desconhecidos. Encontrou seis. Três subiram ontem a um dos palcos do festival que celebra o fado. As outras três podem ser ouvidas hoje.
O festival que celebra a mais portuguesa das formas de cantar começou ontem em Alfama e acaba esta noite. Mas, como quase todos os dias são bons para ouvir cantar o fado naquela zona de Lisboa, na semana passada o músico Jorge Fernando percorreu as ruas à procura de novos talentos que tivessem a «alma na voz». Inicialmente seriam quatro mas acabaram por ser seis os selecionados para subirem ao palco Fado Inesperado, na esplanada do restaurante Alfama Grill, durante as duas noites do festival.
Jorge Fernando conhece bem estas ruas, desde os 16 anos que trabalha com fado e fadistas e as constantes paragens para abraços ou elogios desgarrados são prova disso mesmo. «Sou do bairro. Aqui, é assim», diz enquanto aperta com firmeza a mão do amigo de longa data, o fadista Miguel Ramos. A filha deste, Maria, com apenas 15 anos, é uma das candidatas a cantar no festival. A segurança que demonstra nos primeiros versos silencia o grupo que se juntou em redor para a ouvir. O seu amigo Lucas, mesmo antes de também soltar a voz, revela que já sabe que quer «ser político, apesar de adorar cantar o fado». Um ano mais velha que Maria, Ana Margarida tem um timbre que arrepia. A cantar desde os 7 anos no restaurante dos pais, o fado sai-lhe naturalmente. Afinal, foi ali que cresceu (ainda cresce), entre fadistas e poesia.
«Há tantas vozes tão boas», diz Jorge, enquanto desce a rua de São João da Praça, onde fica o restaurante Porta d’Alfama. A proprietária, Maria Ferreira, ou Tininha, já que estamos entre vizinhos, é conhecida pela simpatia e por ser a autoproclamada «fã número um» de Jorge Fernando. Dois turistas franceses gritam-lhe «bravo», entre aplausos, quando termina a audição, abraçada ao ídolo.
Com uma carreira com mais de quatro décadas ligada ao fado, Jorge Fernando tornou-se um dos guitarristas de Amália Rodrigues com apenas 20 anos. Fernando Maurício, Celeste Rodrigues ou Maria da Fé são alguns dos nomes emblemáticos que o cantor acompanhou. Em 1985, participou no Festival RTP da Canção com o emblemático Umbadá (ficou em quarto lugar). Além do percurso a solo como fadista, é também reconhecido por ser um dos letristas mais respeitados do meio, tendo escrito letras para Nuno da Câmara Pereira, Carminho ou Mariza, entre outros. É também o responsável pelo lançamento de nomes como Ana Moura ou Fábia Rebordão.
No Coração da Sé, na Travessa do Almargem, há uma parede pintada com retratos de fadistas e Jorge Fernando é um deles. Debaixo do seu perfil pode ler-se um dos seus versos: «No peito abre um suspiro e o povo entoa; Só há uma Lisboa, só há uma Lisboa. Consigo traz um mistério bem guardo, chamam-lhe Fado, chamam-lhe Fado…». É ali que é recebido em abraços por Fernando Oliveira, 73 anos, relações públicas do espaço e também candidato ao palco Fado Inesperado, porque canta o fado «desde antes de vocês nascerem, meus queridos».
Houve mais. Durante duas horas, Jorge Fernando foi subindo e descendo ruas, contornando esquinas e virando por travessas e vielas. Nota-se a familiaridade com o lugar e o à vontade com que vai abordando quem encontra pelo caminho.
Foram dez ao todo as pessoas que aceitaram o desafio de cantar na rua. Entre amigos ou desconhecidos, entre versos de Amália ou fado falado, a procura por Alfama reuniu vozes que em comum têm a paixão pelo canção nacional. «A escolha não foi fácil mas acho que eles não vão desiludir», diz Jorge Fernando, depois de escolhidos os finalistas: Tininha, 49 anos, Lucas Calapez, 16, Maria Ramos, 15, Fernando Oliveira, 73, Susana Cardoso, 25 e Ana Margarida, 16.
Tininha, Lucas e Maria subiram ao palco Fado Inesperado ontem, perante uma plateia meio cheia mas muito curiosa. Alguém grita “shiu”. Afinal, vai cantar-se o fado. Lucas escolheu o fado Pode ser saudade, de Jorge Fernando, por achar que «é mesmo uma obra prima da nossa música portuguesa». Esta admiração pelo cantor estende-se a Tininha que lhe agradece o contributo indispensável ao fado. Nascida e criada no bairro onde quer viver toda a vida, Tininha escolheu dois fados que retratassem a convicção com que defende que Alfama é o melhor bairro de Lisboa. Mais tímida na apresentação mas igualmente convicta na voz, Maria Ramos cantou duas músicas sob o olhar atento dos avós, que vieram “aplaudir a menina mais bonita do mundo”. Para o final, os três cantores entoam à música “Cheira bem, cheira a Lisboa”, com a ajuda de um público que se rendeu a estas vozes amadoras.
Fernando Oliveira, Susana Cardoso e a jovem prodígio Ana Margarida podem ser ouvidos hoje, dia 24, no palco da esplanada do restaurante Alfama Gril, na Rua da Regueira, 26, a partir das 19h00.
O QUE PODE VER HOJE NO CAIXA ALFAMA
Ana Moura, Gisela João, Cuca Roseta, Artur Batalha, Miguel Ramos, Ricardo Ribeiro, Aldina Duarte, Maria Ana Bobone, António Pinto Basto ou Carminho são apenas alguns dos nomes consagrados que já subiram ao palco do Caixa Alfama, ao longo das três edições anteriores. Este ano, o festival ainda contou com Marina Mota, num ansiado regresso ao fado.
Hoje, em noite de tributo a Beatriz da Conceição, além dos talentos «caçados» na semana passada ainda pode ver Raquel Tavares, no palco principal, António Parreira e os seus filhos Paulo e Ricardo Parreira.