Vida organizada, sem descendência, amor a rodos para dar aos sobrinhos – de sangue ou do coração. As tias – e tios, claro – podem desempenhar um papel fundamental na educação das crianças. Não substituem os pais, porque os papéis não se sobrepõem, mas são um complemento importante numa estrutura familiar saudável.
Filipa Costa foi-se transformando desde que lhe nasceu a sobrinha mais velha, Inês, 9 anos. Apuraram-se-lhe os reflexos, o ouvido, a atenção aos perigos. Ganhou um sexto sentido. Por altura em que a irmã lhe deu também Sofia, hoje com 5 anos, já a tia era praticamente uma loba, alerta inclusive quando dormem. «Uma mulher pode amar tanto as suas sobrinhas e sentir-se tão perdidamente amada em troca, que elas se tornam a sua inspiração diária», diz a animadora e promotora sociocultural, apaixonada pelas «suas» miúdas. «O amor de tia não tem fim», diz. Propaga-se pelo espaço, como o amor de mãe, mas cada uma no seu papel. E sabe-lhe tão bem sentir-se assim.
«O fenómeno ganhou dimensão suficiente nos últimos anos para ser notado pelos investigadores, a ponto de surgir o acrónimo PANK: Professional Aunts, No Kids [“Tias Profissionais, Sem Filhos”]», explica a psicóloga clínica Ana Oliveira. A experiência como terapeuta familiar e de casal na Oficina de Psicologia permite-lhe concluir que estas tias podem assumir um papel de referência no crescimento dos sobrinhos, pela dedicação que lhes dedicam – é importante para o desenvolvimento de uma criança saber que tem figuras de afeto presentes. «Dá-lhes sentido. Mostra-lhes que podem confiar nas relações e nas pessoas, que têm valor.» Diz-lhes ainda que são especiais e exclusivas para alguém, mesmo que seja uma atenção partilhada.
«O facto de a Inês ter sido a primeira foi uma alegria única por me fazer perceber quão importante é para mim ser tia», diz Filipa, que entretanto se rendeu também à personalidade decidida da mais nova. «Mas nunca fiz distinção entre elas. Amo as duas com igual intensidade.» Por fora, é uma companheirona de 35 anos que brinca com as miúdas, canta, dança, representa, joga à bola e faz trinta por uma linha. Por dentro amoleceu a tal ponto que dá por si a falar-lhes constantemente por telefone e Skype. Além dos fins de semana que vai de propósito a Torres Novas, onde vivem, e os outros em que as espera em Lisboa. «Na batalha das disponibilidades, as sobrinhas ganham sempre. É minha missão estar perto.»
As PANK são, habitualmente, mulheres com a vida organizada, trabalham, têm autonomia financeira e podem, ou não, estar num relacionamento.
«Decidiram não ter filhos por vários motivos, pessoais ou profissionais, ou por ainda não ter chegado o tempo de darem o passo e então dedicam-se genuinamente aos filhos dos irmãos, irmãs e até de amigos e conhecidos – não precisam de estar ligados por laços de sangue», diz Ana Oliveira. E não, o amor de tia não é uma compensação do amor filial, confirma a psicóloga. Uma mulher pode realizar-se com os sobrinhos sem que um tipo de amor substitua outro. «São formas diferentes de interação e responsabilidade. A tia usufrui da riqueza deste estatuto na vida da criança, em lugar de ser uma compensação por algo que não tem.»
Teresa Alves identifica-se com a descrição da especialista em todos os aspetos. «Há muito que deixei de ter oportunidade de ser mãe, mas nem tenho a certeza se alguma vez o desejei», conta a analista financeira de 55 anos. Uma questão fisiológica predispô-la para a eventualidade de não conseguir ter filhos e não ficou presa ao assunto: os sete sobrinhos – três rapazes dos 17 aos 25 anos, mais quatro raparigas entre os 21 e os 28 – enchem-lhe as medidas. «Quando cada um nascia, pensava: “Como é que vivíamos antes sem ele(a)?”.» Viu-os crescer e ainda hoje vibra e sofre com os seus percursos, os (in)sucessos, os (des)amores, tudo. «Quando eram pequenos, assistir às reprimendas, castigos e doenças doía-me como se fosse eu. Queria protegê-los das dores.»
Noutras ocasiões (nunca à frente deles), Teresa permitia-se o papel de advogada de defesa. «Os pais nem sempre têm a lucidez total sobre as situações e acho que aquilo os pacificava um pouco: afinal, os filhos não eram assim tão maus.» Não a incomoda nem um bocadinho que a vejam como alguém fora da norma. Talvez por não ter constituído família tenha podido ser para eles, ainda hoje, um apoio importante em momentos-chave: «Com a sobrinha que também é minha afilhada temos conversas completamente secretas, só nós as duas! Fico orgulhosa e feliz com os votos de confiança que os sete me dão. No que me diz respeito, faço por continuar a merecê-los.»
Já houve tempos em que a expressão «tias» designava as mulheres que não se casavam e, não tendo filhos, ofereciam a sua disponibilidade e economias para ajudar os sobrinhos de sangue ou de coração.
«O sentido era muitas vezes pejorativo, já que não casar ou não ter filhos era visto como um sinal de incompletude», diz Rosalina Costa, socióloga da Universidade de Évora, especialista na área dos estudos da família. Por outro lado, ser o(a) sobrinho(a) de tais tias, sobretudo se também era afilhado(a), tinha «uma legitimidade simbólica para acumular privilégios, desde ocupar-lhe um lugar especial no coração a receber presentes melhores e benefícios na herança».
Atualmente, a conotação negativa esbateu-se e a principal mudança na relação radica no lugar da criança, diferente de contextos em que era mais uma entre muitas. «Porque a maternidade acontece tarde, a experiência de chegar a tia é adiada», diz a investigadora. «Os pais sentem a pressão de uma parentalidade competente e, junto com os outros adultos, procuram a felicidade dos miúdos com um brinquedo, uma viagem, um concerto, dinheiro de bolso.» E aqui são as tias quem mais os mima, fiéis à máxima de que os pais educam e elas estragam.
«Enquanto os pais esticam os seus limites, as tias estão disponíveis, e felizes, para oferecer diversos tipos de apoio a crianças que fazem parte da sua vida», escreve a norte-americana Melanie Notkin, 47 anos, criadora (em 2008) do termo pank e do site Savvy Auntie – «Tia Experiente», para troca de experiências. Frustrava-a que a sociedade não percebesse haver mulheres que não são mães em consciência, por vontade própria, não porque tenham algum problema. Ela própria tia de seis, além das prendas sempre contribuiu ao nível da educação, cuidados médicos, lazer, tempo e afetos. Rosalina Costa concorda: «Cruzam-se aqui valores mais e menos materialistas, discute-se o ser e o dever, afetividade e economia, educação e mimo, sensibilidade e bom-senso.» Podem até surgir tensões se as tias fugirem às orientações paternas – um pilar que Isabel Espírito Santo nunca forçou, mesmo quando carregava às escondidas o telemóvel da sobrinha.
«A Matilde dizia que me dava uma mesada quando eu fosse velhinha, mas fui apanhada e lá se foram os sms dela», ri-se a designer, de 47 anos e três sobrinhos que venera, dos dois irmãos mais velhos. «Uma das coisas boas é vivermos todos no mesmo prédio. Em pequenos era um sobe e desce de escadas em pijama.» Agora não é tão simples tê-los sob a asa: a Matilde, com 23 anos, foi tirar mestrado em Londres há quase três e ficou lá. O pai do Afonso, 16 anos, e da Clara, 13, trabalha há um ano em Nairobi, no Quénia, e, no pouco tempo que tem no verão para cá vir, quer tê-los. «Ao fim de semana levo os dois às grandes superfícies de tecnologia, eu e o Afonso temos esse gosto.» E eles sabem que podem contar sempre com ela, e ela com eles. «Não há nenhum amor igual.»
Isabel desistiu há muito da ideia de ter filhos seus – a vida não se proporcionou e não lamenta –, mas Cláudia Pinto mantém essa esperança. «Sinto que seria uma boa mãe. Já tentámos diversas vezes e não aconteceu, mas a minha relação com os meus sobrinhos não sai prejudicada com o que quer que suceda», garante a jornalista de 36 anos, grata pelos seus cinco «rapazes maravilhosos»: Gonçalo e Guilherme do irmão do meio (um com 8 anos, outro com 10 meses); David, Diogo e Vasco do mais velho (respetivamente de 8 anos, 5 anos e 4 meses). «Sou muito presente, absolutamente realizada e melhor pessoa graças a eles. Somos cúmplices. Não abdicaria deste relacionamento próximo por nada, nem sequer me imagino a trabalhar fora do país.»
Cláudia é daquelas que se emocionam nas festas de Natal da escola ou com alguma resposta invulgar que dão. Enche-os de mimos, mas também ralha se é preciso. E sim, tenta dar-lhes presentes de que gostem, mas sobretudo tempo e momentos únicos e ajuda para fazerem alguma coisa pela primeira vez. Costuma dizer que este é o típico amor que dói, tão forte que lhe sai do peito. «Há dias, o Diogo fez um desenho na escola inspirado numa saída que fez comigo a um domingo», conta. Desenhou-se a ele, à tia, ao carro; o pai partilhou no Facebook e ela impressionou-se com o impacto que podemos ter nos miúdos sem nos apercebermos. «A educadora pede um desenho do que mais gostaram no fim de semana e o Diogo escolheu o momento em que saí, brinquei e estive com ele. Isto vale tudo, certo?»