Se fosse comigo já estava despedida. Esta gente num emprego a sério não aguentava um dia.» Lá estava eu sentada ao lado da pessoa mais irritante de toda a Loja do Cidadão. À espera de vez, a sentir-me burra por não ter feito marcação pela internet, coisa tão fácil e tão eficaz, e com aquela mulher azeda sempre a resmungar. Não se calava. Agarrada ao telemóvel, jogava incessantemente e também se irritava com o jogo. «Já perdi, não passei de nível.» Eu tinha chegado antes dela, já tinha aproveitado para fazer umas compras no supermercado, tomar um café, comprar o jornal atrás e várias pessoas que compravam raspadinhas e faziam euromilhões. O jornal em papel estava lido de ponta a ponta, os números avançavam no ecrã.
Na cadeira onde a mulher jogava sem sorte, tinham passado uma jovem brasileira bonita e depois uma portuguesa que a dada altura começou a rir-se. Olhei para o que a divertia e era a cena que mais vezes se repetiu ao longo da manhã: a operação complexa de fotografar um bebé. O recém-nascido dormia profundamente. Toda a gente à volta estava a apreciar a manobra, os cuidados da mãe e do funcionário. Para os bebés mais crescidinhos, há brinquedos à mão para tentar que eles olhem em frente e sorriam. Para os miúdos com dois ou três anos ou assim, há sobretudo palavras para captar o olhar. Apareceram dois gémeos loirinhos absolutamente idênticos. Podiam ter usado a mesma para os dois, mas eles portaram-se com a maior calma. O recém-nascido ficou de olhos fechados no cartão e todos voltámos ao tédio.
«Só há um balcão para o cartão de cidadão, por isso é que nunca mais me chamam. Estou aqui há duas horas, cheguei às dez e já é meio-dia.» Nem era meio-dia, nem ela tinha chegado às dez, nem havia só um balcão, como se percebia pelos números chamados e o filho não ligava nenhuma ao que ela dizia, nem abria a boca.
Recorri ao telemóvel para ver notícias. Li mais jornais, Alepo debaixo de fogo, a escola com cem alunos na Síria que funciona numa gruta, os incêndios, tantas coisas dramáticas e a outra sempre naquilo. «Esta gente não faz nada.» Ao meu lado direito sentou-se uma mãe com um rapazinho. «No cartão antigo ainda não sabias assinar, agora já sabes. Trouxe um papel e uma caneta para ires treinando.» Chegou uma amiga mais velha, apertámo-nos e lá ficaram a falar em crioulo sobre a vida.
Mais notícias. O episódio do dia de Trump: «As eleições vão ser uma fraude para o diabo da Hillary ganhar e vai haver um banho de sangue.» Voltei a ler, estava em inglês porque eu já tinha esgotado os jornais portugueses. Bloodbath, disse ele. Preferia quando dizia «Estás despedido» e era mesmo um reality show. Parece que estás a achar que vai perder, pensei.
A minha senha foi chamada, perguntei a quem me atendeu quantas horas trabalhava. «Fazemos turnos, hoje entrei às oito e meia e saio às duas e meia da tarde, e entretanto entram os do outro turno e ficam até a Loja fechar, às oito.» E pausa para almoço? «Devíamos fazer mas não dá, isto está cheio de gente.»
OK, minha cara colega de espera, pensei um pouco no seu assunto e decidi. Está despedida. Do grupo de pessoas aceitáveis para ter ao lado enquanto aguardo a vez. Do grupo de pessoas aceitáveis para ter ao lado. E aprenda a usar o telemóvel para mais do que o Candy Crush, agende a sua próxima ida à Loja do Cidadão, vai ver que é facílimo. Não é por si, é pelas pessoas que vão suportar o seu azedume (e o seu mau cheiro, também, já que penso nisso).
[Publicado originalmente na edição de 7 de agosto de 2016]