Na noite de segunda feira, numa taberna de Trancoso, distrito da Guarda, a televisão transmitia o jogo da Seleção Nacional mas estranhamente ninguém falava de futebol. Havia três pessoas sentadas nas mesas, mais uma atrás do balcão, e a discussão que levantava vozes era a do protesto dos taxistas contra a Uber. Ninguém ali usava a aplicação, mas todos pareciam ter uma opinião bastante formada sobre o assunto. E nenhuma alma alinhava pelo discurso dominante, de defesa das novas plataformas. «De transportes informais entendemos nós», explicou-me o meu companheiro de mesa. «E não somos fãs.»
Todas as semanas, cinco carrinhas – mais nos períodos de férias – saem do município de Trancoso em direção a França e Suíça. E o mesmo acontece na esmagadora maioria de concelhos da Beira Alta e Trás os Montes. Há um esquema de transportes informais montado no interior do país que serve para levar e trazer emigrantes. Funciona desde o final dos anos oitenta e, hoje, é bastante fácil de identificar porque as carrinhas são normalmente Mercedes Vito, com lugar para seis ou nove passageiros – mas onde, nas mais das vezes, são acrescentados bancos desmontáveis para caberem doze pessoas e um atrelado para transportar bagagem.
Em março deste ano, levantou-se o véu deste mercado negro graças aos 12 emigrantes portugueses na Suíça que perderam a vida a bordo de uma destas carrinhas, depois de o condutor – de 19 anos e sobrinho do proprietário do veículo – ter perdido o controlo da viatura e embatido de frente contra um camião. Nessa altura, as empresas que estão legalizadas vieram a público dizer que 70 por cento dos operadores não têm licença para transporte de passageiros. E que são conduzidos por motoristas com carta de ligeiros, que não podem levar toda aquela gente.
Em Trancoso, explicaram-me as manhas do negócio. Os condutores ganham menos de 500 euros por fazerem a viagem direta, ida e volta, no menor espaço de tempo possível. Paris em 17 horas, é a norma. Chegam carregados de gente e voltam logo para trás, sem dormir. Às vezes, quando o motorista fica com sono, um dos passageiros substitui-o ao volante. Uma viagem com retorno custa 230 euros e tem a vantagem de ir buscar e entregar as pessoas à porta de casa. Quando alguém vive em Poitiers e quer ir a Viseu, a alternativa sai mais barata do que um voo low-cost, porque se poupa o tempo e o dinheiro de transfer para os aeroportos.
Para quem está habituado a tomar aqueles transportes, a Uber parece perigosa. Eles sabem que o desvio às regras vai ceifando vidas nas estradas, que a desresponsabilização das empresas sobre os condutores faz com que se contrate gente sem mãos para pegar num volante, que as estradas sem lei são campos de tiro. E não é que alguém nutra particular simpatia pelos taxistas – aqui eles são sobretudo usados em caso de emergência, para transportar pessoas para o hospital. Mas, nessa taberna de Trancoso, na noite de segunda-feira em que Portugal ganhou por seis a zero, o povo discutiu, discutiu e chegou à conclusão que a Uber comete o mesmo crime que a rede de transportes ilegal de emigrantes. Que explora os seus condutores e não está obrigada a qualquer compromisso de segurança com os clientes. E que, se calhar, o que parece ser progresso é afinal um passo atrás.