Carta aberta a Fernando Savater

Notícias Magazine

Isto não é realmente uma carta aberta e muito menos a Fernando Savater, que de certeza não a lerá jamais, mas vem a propósito de um texto que publicou no El País há uns dias. Nessa crónica, começava por lamentar que ande a correr por aí a ideia de que as instituições europeias deviam deixar de ter sede na Bélgica, acusada de incapacidade para tratar os problemas do terrorismo como deve ser. E finge – o filósofo é um fingidor – que não haveria argumentos sólidos para tomar tal decisão.
Finge que até acha amável um país que não consegue entender-se quanto à língua que fala, que tem uma organização administrativa duplicada por causa da tal questão que não é só linguística, e que esta desorganização causada pela excessiva organização leva a incongruências fatais na ação policial e de segurança. Diz até que a polícia não pode atuar durante a noite, porque tem leis que o proíbem e só funciona nas horas de expediente.

Já o Der Spiegel tinha feito dias antes uma descrição da Bélgica neste tom, chamando-lhe, com condescendência, o país do desenrascanço.

Ora bem. O que eu tenho a dizer sobre isto, e salvaguardando desde já a declaração de interesses de quem viveu, com dificuldades, é certo, mas com democracia num tempo em que Portugal não a tinha, é que criticar os belgas é muito fácil, fácil de mais, é pior do que bater na avó. Eles são assim, gente misturada de várias invasões e sem uma montanha de que possam orgulhar-se. Uns falam flamengo, outros francês, outros alemão, e falam tudo isto com pronúncias que os holandeses, os franceses e os alemães acham pouco respeitáveis, porque os holandeses, os franceses e os alemães se acham superiores aos outros.

Mas não imagina, professor Savater, como nos dá jeito que exista na Europa um país que não só é alvo de piadas por parte dos franceses como é simultaneamente alvo de críticas conformadas por parte dos seus próprios habitantes. A frase «Isto só em Portugal», perdão, «Isto só na Bélgica», com a(s) devida(s) tradução(ões) em francês, flamengo (está bem, eu posso dizer neerlandês que é a palavra certa) e alemão, foi inventada no plat pays, e criou uma barreira de defesa que beneficia os holandeses. Estes, os das tulipas, falam a mesma língua de metade dos belgas, aspirando consoantes, mas não dão tanto nas vistas porque andam de bicicleta em vez de sandálias com meias. Também não têm montanhas de jeito.

E isto dá-nos jeito, a nós, portugueses, que atraímos turistas de todo o lado distraidíssimos com o nosso sol (de que a Bélgica, efetivamente, não se pode gabar), com as nossas praias (Knokke é bonita mas é uma coisa assim parecida com uma tempestade de areia mas com frio e um mar muito mais gelado do que a Póvoa de Varzim alguma vez terá), e os nossos preços baixos (que a Bélgica, onde se ganham salários, vá lá, europeus, não consegue ter). E com os nossos pastéis de nata também.

Imaginemos que as instituições europeias, aflitas por terem Molenbeek mesmo ali ao lado, fogem todas para a Suíça, onde também por acaso são faladas várias línguas e com sotaques que divertem os alemães, os franceses e os italianos. Sempre tinham montanhas e lagos e relógios. Cá para mim os chocolates belgas são melhores, mais raffinés. Ou então vão para o Liechtenstein, ficavam com um país só para gabinetes e polícias e ficavam perto de tudo. Desde que não nos tragam toda aquela parafernália toda para Lisboa, olhem, façam o que quiserem.

[Publicado originalmente na edição de 10 de abril de 2016]