Adele e Bruce Springsteen choraram nos concertos que deram em Lisboa. E como isso tem tudo que ver com o sol que nos falta por estes dias.
Tenho saudades do mar. Festivais de verão palmilhados de sandálias, com o pó a entrar para os dedos dos pés. Tenho saudades do sol e da quente primavera portuguesa.
E isto não é um desejo fútil, provocado por este tempo titubeante de que todos nos queixamos. O sol, o mar, o langoroso desejo de praia, o verão que faz prolongar os dias e acentuar o silêncio dos fins de semana da cidade, tudo isto são coisas que fazem parte da essência de ser português. Muito do que nós somos está intimamente ligado ao ambiente em que vivemos.
Muita da nossa identidade é sal. E também isto não é poesia. O sal, omnipresente nas nossas costas e na nossa cultura, deu-nos as mesmas facilidades que a savana aos hominídeos que ficaram do outro lado da evolução: nunca tivemos de pensar em como obtê-lo. Se a isto juntarmos a ideia de que nunca tivemos frio, nem fomos invadidos de forma brutal, percebemos rapidamente que parte do que somos é o que é porque nunca tivemos de nos defender nem correr atrás de nada. Temos as fronteiras mais estáveis da Europa, e há mais tempo.
Por isso demos em ser individualistas e muito pouco organizados. Mas, por outro lado, somos despreocupados, simpáticos, calorosos e informais, sorridentes e com sentido de humor até um pouco básico. Despachados. E generosos.
Lembrei-me de tudo isto porque aconteceu a mesma coisa em dois concertos diferentes. Adele chorou em palco, declarando que em Lisboa deu o melhor concerto da sua vida. Não foi falso, o choro, embora ela seja uma cantora dadivosa e comunicativa. Antes, Bruce Springsteen tinha sido surpreendido pelo entusiasmo de uma multidão a que respondeu chorando também. Ambos nem esperaram as habituais palmas para os encores: fizeram-nos de seguida, como se fossem o corolário lógico de tudo o que até àquele momento tinha acontecido.
E eu fiquei a pensar que estas estrelas que nos visitam, nestes dias de festivais de verão em grande número, quando chegam aos palcos, já levaram com um banho de cultura e civilização nos dias que passam por aqui. Não essa a que estão habituados, feita de museus, lojas, cidades direitinhas e gente fria que se passeia por elas sem olhar para os demais. Aqui, em Portugal, dão de caras com uma civilização de séculos. São anos e anos de cultura em cima de nós. Quinhentos anos a andar pelo mundo e a conhecê-lo bem. A negociar com gente hostil e a levar a brasa à nossa sardinha – outra expressão que traz o contexto que nos rodeia para o que somos.
Todos falam do que comem e do que bebem. Essa, a civilização da comida e da bebida, e da convivialidade que lhe vem por acréscimo, é a nossa. A civilização do sol, do mar e do sal. Depois, algo que só pode vir de um povo que está habituado a respeitar o outro, as estrelas são deixadas em paz o suficiente para irem comer a restaurantes da moda, ou mesmo à praia, ou ao festival mais concorrido, ver os amigos. Não estou a inventar nada disto. Aconteceu nas últimas semanas em Portugal.
Em cima dos palcos, essas estrelas são saudadas com a energia da multidão que se comporta como se lhes desse um abraço. E eles sentem isso. Portugal precisa, pois, do calor, do seu mar, do céu azul de Lisboa e do sol que ilumina as pedras da cidade do Porto. Em Portugal, o bom tempo não é apenas um contexto.
É o ADN. É bom que os elementos – ou quem os coordena – tenham noção disto.
[Publicado originalmente na edição de 29 de maio de 2016]