Amores à prova de bala

Todos os anos, 4500 mulheres em Portugal recebem o diagnóstico de cancro da mama. O balde de água fria obriga a grandes mudanças na vida e pode ser a prova mais dura num relacionamento. Mas como a luta a dois torna a doença um pouco menos exigente, é nos maridos e namorados que muitas destas mulheres se apoiam. Eles passam a ser cuidadores, desdobram-se em tarefas, estão presentes.

Por agora, não existem vestígios da doença. Foram estas as palavras do médico de Vera Ferreira (na foto), 35 anos. Para ela e o namorado significa que «estão curados». Pode não ser assim, mas é preciso acreditar. Faz agora dois anos que chegou o diagnóstico de cancro da mama. Juntos passaram a ter uma «tarefa». Iriam passar por «aquilo» juntos, fazer o que fosse preciso e seguir em frente. Como uma equipa. Raimundo, 35 anos, tinha acabado de sair de Alverca, onde viveu toda a vida, para ir morar com Bé, como lhe chama, em Almada.

«Nos primeiros três meses de quimioterapia no Hospital do Barreiro fiquei sozinho na casa onde era suposto estarmos os dois.» A namorada ficava em casa dos pais, onde Raimundo terminava os dias porque continuou sempre a trabalhar. «Por causa das náuseas e das aftas provocadas pela quimioterapia a Bé tinha dificuldade em falar, e em alguns momentos o silêncio falava por nós. Passámos alguns episódios escuros, daqueles que lembram que o cancro pode ser fatal.» Esteve sempre presente. Umas vezes tranquilo, outras com medo e também cansado. Celebravam cada ciclo de quimioterapia e a respetiva recuperação. «Menos um, mais um, já não faltava tudo.»

Foi ele quem lhe cortou o cabelo quando este crescia incerto. «Ela ficou mais bonita com a cabeça à vista.» Não guarda boas recordações da peruca mas compreende o seu papel. Gosta de rir e de fazer rir. «É terrível quando fazemos perguntas e a pessoa não tem força nem vontade de responder. É horrível ver a pessoa que amamos desmaiar, vomitar ou simplesmente fechar os olhos porque está arrasada. Mas passa. Tem de passar. Não me lembro de a ter tratado como doente e respeitei sempre as escolhas dela. Depois de escolher é só fazer.» Não gosta de falar muito e continuou a estar com os amigos, a manter a cabeça organizada no trabalho e a dedicar-se ao que gosta de fazer. Viveu esta fase «sem drama», sem nunca pensar que poderia correr mal. «O tratamento oncológico é arrasador. E nestas situações a intimidade nem sempre passa por sexo.» A intimidade ressentiu-se mas a relação de dez anos não. «Acho que nos conhecemos muito melhor depois disto.» A infertilidade não é necessariamente uma consequência nem um dado adquirido. «Gostamos de contrariar as estatísticas, sonhamos e a seu tempo teremos filhos.» O que se segue? A reorganização da vida profissional de Bé e pôr a escola de yoga a funcionar em pleno.

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Luís Conde (na foto), 42 anos, lembra-se da tarde em que foi buscar a mulher ao trabalho. Já passaram cinco anos. Foi em lágrimas que ela lhe deu a notícia: cancro da mama. «Tentei ser o mais forte que consegui para tranquilizá-la», diz. Passado o choque inicial, assumiu que tudo iria correr bem. Não lhe transmitia insegurança. «Ela é que precisava do meu apoio.» Desabafava com os amigos e a família. Juntos estariam todos lá para ela. «O mais difícil era manter o espírito leve e forte perante o ambiente pesado do hospital.» Rosa, agora com 43 anos, nunca esteve sozinha. Entre todos, havia uma espécie de «turnos» durante o internamento. Luís é informático e como morava perto do Hospital de Cascais, onde a mulher foi seguida, acompanhava sempre que possível os tratamentos. Nos períodos em que tinha de ficar internada, levava-lhe livros, revistas, peluches. «Flores nem pensar, não era permitido no hospital.» Quando não estava internada, Luís levava- a a passear, a jantar fora e organizava programas que nunca tinham feito. Tudo era válido para que fosse possível esquecer aquele tratamento. Quando tudo parecia estar bem e já em casa depois de mais uma sessão de quimioterapia, uma crise de apendicite que não foi logo valorizada colocou-a em perigo de vida. Informaram-no que Rosa poderia não passar daquela noite. Mas ele aguentou-se. «Sabia que ela ia ficar bem. Não sei como, mas sabia-o.»

Havia dias em que ficava completamente desorientado no ambiente hospitalar. «Não sabia como agir, com quem falar, onde estar, o que fazer.» O importante era estar lá para ela. «A certa altura, já me sentia capaz de enfrentar o mundo para a proteger.» Juntos enfrentaram a mais dura das provas e o relacionamento nunca saiu prejudicado. «Assegurou, sim, o casamento poucos meses depois. O cancro da mama fez-me ver o quanto ela precisava de mim e eu dela.» Ter filhos, viver uma vida sossegada e ter saúde «por mais cem anos». É só o que desejam.

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É uma pessoa bem-disposta e ainda hoje gosta de fazer a mulher rir. Garante que raramente chora mas em 2010, na consulta do Instituto Português de Oncologia (IPO) de Lisboa em que foram informados que Ana Maria (na foto) tinha cancro da mama foi difícil controlar as emoções. «Viemos arrasados mas com a certeza de que a Ana iria tratar-se e que conseguiríamos dar a volta por cima.» Toda a situação foi uma novidade e a vida mudou completamente a partir daí. Mecânico de automóveis, 58 anos, com uma oficina aberta ao público, Ângelo teve de fechar várias vezes a porta para acompanhar a mulher aos tratamentos. Ainda que tenham percebido que o tumor era «agressivo», nunca teve receio da hipótese de lhe ser retirada a mama – o que acabou por não ser necessário. «Queria que a minha mulher ficasse boa. Com ou sem mama, pouco importava.»

Uma cirurgia, seis tratamentos de quimioterapia e 36 de radioterapia tornaram o processo mais exigente. «Ajudei sempre nas tarefas de casa, só não gostava de lavar louça.» Era ele quem lhe mudava o penso e lhe dava banho. «Ela tinha medo de se sentir mal. Eu tinha apenas medo de a magoar quando lhe tocava.» De todas as situações, uma das mais difíceis foi a queda brutal de cabelo. «Não estava preparado para vê-la careca e inchada devido aos tratamentos, mas sempre encarei a doença como algo natural e encorajei-a a lutar com todas as forças.» Quando se sentia mais em baixo era com Deus que falava para o ajudar a ter forças para continuar a cuidar. «Tinha medo de que ela morresse e pensava no que seria a minha vida sem ela.»

Não gostam de dizer que Ana está curada. «É uma sobrevivente.» Acham que ninguém fica a mesma pessoa depois de ter cancro. Vivem um para o outro. «Damos mais valor a tudo. É uma nova vida mas melhor.» Ana está atualmente desempregada mas é voluntária no Movimento Vencer e Viver do IPO que ajuda mulheres com cancro da mama. Não têm tido oportunidade de tirar férias mas Ana tem o sonho antigo de ir a Paris. Ângelo tem medo de andar de avião mas já lhe prometeu que fariam esta viagem. Agora que a vida lhes deu tréguas.

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Luís e Ana Teresa (na foto) têm 57 anos. Conheceram-se no Instituto Superior Técnico há 39. Estudaram Engenharia Eletrotécnica. Casaram há trinta anos. Têm duas filhas, a Joana, com 24 anos, e a Marta com 22. E há dez a vida mudou. De vez. O resultado de uma biopsia à mama traçou o destino: «intervenção cirúrgica para uma quadrantectomia [remoção de um quarto da mama]». A tensão permaneceu mesmo após a operação, pois o tipo de tratamento que se seguiria permitiria definir o quadro seguinte. «Felizmente que o veredito apontou para a radioterapia, o que nos sossegou quanto ao quadro evolutivo da doença», diz Luís. Em cada evolução durante o processo, toda a família se empenhou na cura. Luís desdobrou-se entre a atividade profissional e o acompanhamento da mulher e das filhas para que não fossem levantadas suspeitas sobre a gravidade da doença da mãe. Embora não fosse grande ajuda na cozinha por não ter «grandes dotes culinários», procurou assegurar todas as tarefas domésticas mais exigentes fisicamente. E oferecia-lhe flores. Muitas flores. Surpreendia-a da forma que ela mais gostava. Agarrou-se à fé inabalável em Deus e na capacidade dos médicos que a acompanharam na Clínica de Santo António, na Amadora.

«Estes momentos, os mais delicados nos anos todos de vida em comum, reforçaram o nosso amor consubstanciado no projeto de família, que tem naturalmente nas nossas filhas o seu expoente máximo.» Não sentiu necessidade de acompanhamento psicológico, suportando-se no apoio de familiares e amigos próximos. As inquietações eram partilhadas sobretudo com os primos e os colegas de trabalho. «Nunca me senti impotente face ao quadro que se colocava e acreditei sempre que o dia seguinte seria melhor.» As filhas estão hoje particularmente atentas à doença e, elas próprias, enquanto mulheres, «estão despertas para quaisquer sinais que possam soar a alarme». Ana Teresa dedica-se hoje ao voluntariado também no Movimento Vencer e Viver, onde tem a possibilidade de «dar testemunho da experiência que viveu, ajudando as doentes que tanto necessitam de esclarecimentos e ajuda no momento difícil que atravessam», diz ela.

SOLIDÃO ACOMPANHADA

«O meu marido não aguentou a pressão. Só depois desta doença é que percebi o quanto o aspeto físico era importante para ele», Maria (nome fictício)

Cerca de 4500 novos casos de cancro da mama são detetados todos os anos em Portugal. É a maior causa de morte de mulheres por cancro no nosso país, vitimando cerca de 1500 pessoas por ano – em 2012 foram 1663, segundo a Direção-Geral da Saúde.

Apesar de afetar também os homens – um por cento –, eles são sobretudo cuidadores. Ou não… Estar ao lado de alguém com um diagnóstico tão duro como cancro implica estofo. Que nem todos têm… Seja por incapacidade, limites, insegurança ou qualquer outro motivo. Por isso também há quem enfrente o cancro da mama sozinho. «Cada homem reage à sua maneira», diz Ana Maria Morais, psicóloga que integra a equipa da Clínica Multidisciplinar da Mama do IPO Lisboa. «Há companheiros que estão compreensivamente presentes, atenuando as dificuldades da situação e maridos que, por incapacidade ou indisponibilidade, tornam toda a experiência ainda mais difícil.

Cada homem terá as suas razões específicas que só poderão ser compreendidas por eles. Mas a ameaça que a doença representa e as alterações físicas, económicas e familiares são fatores que podem estar presentes nessa reação.»

Aos 45 anos, Maria (nome fictício) viu a vida dar uma volta completa. Nada é como era dantes. Separou-se no ano passado depois de vinte anos de casamento. «Sempre fui o pilar em casa e tudo estava concentrado em mim.» Quando ficou doente, em 2008, a família «desmoronou-se por completo». Quando recebeu o diagnóstico de cancro da mama, ainda estava em processo de luto pela morte recente do pai. O seu caso foi atípico: teve de passar por três cirurgias, pois a remoção inicial do tumor não era suficiente.

«O processo não tinha fim e sempre que começava a sentir-me melhor tinha de ser novamente operada.» Fez grande parte dos tratamentos sozinha, ia de autocarro para o IPO Lisboa, continuou a trabalhar na medida do possível e cuidava da filha mais nova, na altura com 4 anos.

«O meu marido não aguentou a pressão. Só depois desta doença é que percebi o quanto o aspeto físico era importante para ele.» Ainda pensou que aquela fase iria passar… Mas não passou. «Deixou de gostar de mim e de ter desejo sexual. A nossa vivência durante estes anos foi o que chamo de solidão acompanhada.»

No ano passado, Maria resolveu colocar um ponto final na situação e saiu de casa com a filha mais nova, agora com 10 anos. Hoje está divorciada e reaprendeu a viver. «O cancro colocou a minha vida de pernas para o ar. Aprendi a contar comigo própria e tentei fortalecer-me. Achei que se procurasse o meu apoio nos outros eles poderiam falhar pelo que teria de concentrar as forças em mim.» Voltou a estudar e está quase a terminar uma licenciatura em Ciências Sociais. Está a saborear cada momento e «a viver uma nova vida». Neste momento faz exames anualmente.

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Esta reportagem foi originalmente publicada na Notícias Magazine a 25 de outubro de 2015, sob o título «Na saúde e na doença».