Em 1968, duas festas trouxeram a Portugal um desfile de moda digno da noite dos Óscares. A 4 e 6 de setembro, nos badalados bailes Schlumberger e Patiño, em Colares e Alcoitão, entre o brilho de joias milionárias, princesas, atrizes e socialites dançaram até de manhã em modelos da Dior, Lanvin, Balenciaga, Valentino e Givenchy.
A lua estava quase cheia e a temperatura amena mas, na noite de 4 de setembro de 1968, havia mais estrelas em Colares do que no céu. Há meses que Maria da Conceição e Pierre Schlumberger tinham enviado os 1200 convites para a luxuosa festa que ofereceriam na Quinta do Vinagre, uma das muitas residências que o casal de milionários tinha em todo o mundo. Nesse serão, além de 72 amigos íntimos, esperavam príncipes, princesas, duques, atores e atrizes de Hollywood, e outros grandes nomes da alta sociedade mundial. A casa estava pronta e os empregados trajados a rigor – com os seus casacos azul-celeste e aplicações prateadas. Tudo a postos para um desfile digno da passadeira vermelha dos Óscares.
A anfitriã fora clara quanto ao vestuário. «Todas as senhoras deverão trazer vestido comprido e não consentirei a entrada a pessoas com pijama party, como vem sucedendo ultimamente», disse aos jornalistas. «Os homens envergarão smoking.» Quando os portões se abriram na noite da festa, porém, os donos da casa fecharam os olhos a calças e bermudas com túnicas superiormente elegantes e até ao vestido curto da britânica Margaret Campbell, mais conhecida por Lady Argyll, ex-mulher do duque de Argyll. Só impediram mesmo a entrada a uma convidada que tentou entrar de casaco de fazenda e vestido curto. «Para um baile de gala, de facto, era de mais», escreveu a implacável cronista Vera Lagoa, na temida coluna no Diário Popular. Os cuidados com o vestuário eram tantos que até os trinta agentes da PIDE destacados para vigiar as imediações da quinta foram trabalhar de smoking.
Naquele início de setembro de 1968 todos os caminhos da alta sociedade mundial apontavam para Lisboa. Ainda antes de os Schlumberger anunciarem a festa em Colares para o dia 4, já os milionários Beatriz e Antenor Patiño tinham comunicado a realização de um baile para 1500 convidados da elite mundial na sua quinta de Alcoitão. A receção seria ao nível da fortuna astronómica do rei do estanho. A data ficou marcada para 6 de setembro.
Sem que se soubesse, os bailes aconteceriam no exato momento que marcou o princípio do fim de Salazar e do regime. Depois da famosa queda da cadeia que deu a 1 de agosto, devido a um acidente vascular cerebral, o presidente do Conselho viria a ser submetido a uma delicada cirurgia na noite da festa Patiño. Nunca ficou totalmente recuperado. No final de setembro, Marcelo Caetano havia de substituí-lo, conduzindo os destinos do Estado Novo até à Revolução de Abril de 1974. Para um círculo íntimo do ditador, as preocupações com o futuro começaram nessa noite. Mas a maioria dos convidados nem sonhava o que estava para vir.
As festas variaram em tema, mas coincidiram em requinte. As toilettes começaram a ser preparadas com enorme antecedência. Por uma vez, a capital portuguesa foi o epicentro da moda internacional. «Na alta-costura, havia uma regra simples, clara e fácil de entender: as coleções eram apresentadas em Paris e só depois levadas para o resto do mundo. No outono de 1968, não foi assim: por causa das festas Schlumberger e Patiño, os costureiros mostraram os seus modelos inéditos primeiro em Lisboa», escreveu Miguel Pinheiro no livro A Noite Mais Longa (ed. A Esfera dos Livros).
Na noite, do primeiro baile, a concentração de modelos de alta-costura era elevada: Audrey Hepburn escolheu um Givenchy branco de cintura alta e aplicações douradas; Doris Brynner, mulher do ator Yul Brynner, preferiu Valentino; a modelo francesa Capucine evidenciou-se com o seu Balenciaga. «A coleção passava… Lanvin, Nina Ricci, Dior, Dior, Dior», descreveu a repórter da Modas e Bordados. Também havia criações de Madame Grès e de Jean Patou.
Se é um facto que a Quinta do Vinagre parou para ver chegar Gina Lollobrigida, há que reconhecer que a crítica foi dura em relação ao vestido de seda baça e brilhante que usou no baile Schlumberger. «Estava pirosíssima. Sempre a achei assim, mas desta vez exorbitou», vaticinou Vera Lagoa, indignada com o decote demasiado generoso. «Parecia, como de costume, um reclame a produtos para o desenvolvimento de certas glândulas.»
No extremo oposto estava a socialite Vala Byfield. Considerada uma das mulheres mais bem vestidas do mundo, trouxera de Nova Iorque um Armand preto e branco e o seu cobiçado diamante de 55 carats, o quarto maior do planeta. O conjunto era irrepreensível, como sempre. «Simples, bela e deslumbrante», palavras da imprensa, estava também Begum Aga Khan, viúva de Aga Khan III, líder espiritual dos ismaelitas, no seu sari cor de pêssego. Os diamantes que usou tinham a medida certa para realçar o conjunto: nem a mais nem a menos.
A pressão que antecedeu as duas festas era tão grande que levou muitas senhoras da aristocracia portuguesa a colocarem-se nas mãos de grandes criadores internacionais. Amante de moda e grande cliente da alta-costura, Maria da Conceição Schlumberger jogou pelo seguro e escolheu um vestido azul de Givenchy, o seu estilista preferido. O modelo, segundo Vera Lagoa, «não a favorecia muito». O cabelo também não. Apesar de a anfitriã ter mandado vir especialmente de Paris o cabeleireiro Alexandre, um dos mais cotados técnicos da firma Elizabeth Arden, o penteado «não a beneficiava».
Mary Espírito Santo preferiu encomendar a Pierre Balmain o longo vestido de organdi de seda branco, bordado a strass. Há anos que a viúva do banqueiro Ricardo Espírito Santo era cliente do costureiro e, dessa vez, usou uma criação «de cinto alto, inteiramente bordado a pedrarias», como descreveu a revista Modas e Bordados. Mary levava ainda «um maravilhoso adereço de brilhantes e esmeraldas» e um vison jasmim para se proteger do frio.
Outras portuguesas, como a própria Vera Lagoa, quiseram manter-se fiéis aos costureiros nacionais. Nas vésperas das duas festas, a azáfama era tanta nos ateliês que obrigou a preocupações especiais. «Para evitar fugas de informação e não correr o desagradável risco de ter várias clientes a cruzarem-se umas com as outras, as provas de vestidos eram marcadas em dias diferentes e com bastante tempo entre cada uma», escreveu Miguel Pinheiro em A Noite Mais Longa. Como muitos convidados estiveram nas duas festas, o cuidado para não repetir modelos era ainda maior.
Na loja Candidinha não houve mãos a medir: de lá saíram fatos para Maria Amélia de Mello, Maude Queirós Pereira e Maria Teresa Pinto Basto, entre muitos outros que desfilaram nas duas receções. Ana Maravilhas, uma das mais destacadas criadoras de moda do país, foi a Paris buscar tecidos para algumas das suas clientes, entre as quais a condessa de Mendia e várias mulheres da família Espírito Santo. A Casa Bobone fez cerca de trinta vestidos, Maria Luísa Barata vendeu bastantes modelos Emilio Pucci, e Nelson, um estilista em ascensão, recebeu 15 encomendas.
Apesar de todos os cuidados, apareceram três vestidos roxos iguais no baile Schlumberger, como notou Vera Lagoa, que se vestiu na Carmen Modas. Para os cabelos, a jornalista também preferiu mão-de-obra nacional: «Peguei nos meus 47 gramas de postiços e fui pentear-me à Odette, do Cabeleireiro Amaro (até há pouco tempo o cabeleireiro de Maria da Conceição Schlumberger)», confessou.
Nesses dias, de resto, os donos dos salões portugueses estavam em polvorosa, insurgindo-se contra a invasão francesa protagonizada por Clément, Alexandre, Laurent e Claude Maxime, três cabeleireiros vindos especialmente de Paris com as respetivas equipas para garantir serviços de primeira classe às convidadas dos dois bailes. Segundo o Diário Popular, Laurent, que fora contratado para pentear Beatriz Patiño e um restrito grupo de amigas, trouxe na bagagem «uma grande dose de talento e vinte quilos de postiços». O visual da anfitriã já tinha sido decidido alguns meses antes em Paris: «Cabelos longos puxados para trás, levemente encaracolados na nuca e presos por dois ganchos formados por quatro brilhantes enormes especialmente montados para o efeito.»
Além da senhora Patiño, Laurent também cuidou da marquesa de Cadaval, das baronesas Rotschild e de l’Epée e da princesa Maria Gabriela de Sabóia, entre outras. Claude Maxime esteve no Estoril a convite da «senhora Boullosa, sua antiga cliente da avenida Kléber». No salão de Alfred e Antoine, no Estoril, penteou a princesa Ira de Furstenberg, a duquesa de Liancourt e Liliane Bettencourt, a dona da L’Oréal. Claude apostou nos cabelos curtos para durante o dia e longos para a noite, com postiços e modernos ganchos metálicos. O preço dos penteados variava entre 250 escudos para os curtos e os 500 para os longos.
Se na festa Schlumberger havia muitas mulheres bonitas e bem vestidas, no baile Patiño as convidadas superaram-se. O dress code pedia vestidos longos, de cores pálidas e, em noite de lua cheia, as senhoras tiraram do armário os melhores trajes do ano. Beatriz, a anfitriã, usou um vestido branco e ouro, desenhado especialmente para ela pela casa Dior, e um valioso colar de diamantes. Mas por muito que estivesse elegante, nada se comparava com a beleza de Audrey Hepburn, que foi, de novo, «vestida por Givenchi, maravilhosamente vestida por Givenchy», escreveu Vera Lagoa. De resto, a atriz vinha acompanhada pelo próprio costureiro, que também desenhou o fato assimétrico da modelo Capucine.
Para a cronista, a pior criação da festa era o fato de Jean Patou, todo feito de penas, calças coladas às pernas e tecido transparente que «trazia aquela rapariga que parecia uma ave». Pelo contrário, Ratna Dewi, uma das ex-mulheres do presidente indonésio Sukarno, «estava mais bonita do que nunca». A princesa Jeanne Marie de Broglie vestiu Lanvin e Maria Amélia de Mello mostrou-se «faiscante» no seu Dior. Só o criador Valentino, que esteve no baile, tal como Hermès, vendeu 35 toilettes para a festa.
De Candidinha, Carmen Modas e Ana Maravilhas havia vários exemplos de topo. Mas no meio de tanto luxo, houve ainda quem desse nas vistas com vestidos feitos em casa – sem vergonha de admitir a origem do modelo.
E porque nem só de mulheres se faz um baile, também os homens se vestiram, naturalmente, a rigor. O ator austro-alemão Curd Jurgens vestiu um casaco de veludo. A mesma opção fez o português João Mayer. Ricardo Ricciardi apostou numa camisa com jabot (folhos à frente), o playboy Bobsy Carvalho e Silva escolheu um casaco de damasco azul-pálido. Henrik de Monpezat, noivo da futura rainha da Dinamarca, Margarida, apresentou-se com um smoking branco. Que se saiba, nenhum cavalheiro repetiu a ousadia do príncipe de Thurn und Taxis, o único a quebrar o protocolo e a aparecer no baile Schlumberger sem black tie.
Quando o dia nasceu e o pequeno-almoço foi servido junto da piscina na Quinta de Alcoitão, o sol iluminou vestidos e mostrou joias e penteados em todo o seu esplendor. Era o fim de três dias inesquecíveis de um fogo-fátuo, um fenómeno do outro mundo que se eclipsou à medida que cada um dos 1500 convidados levou a alta-costura de volta a casa. Em Portugal, nunca mais se viu nada assim.
ANFITRIÕES
Simon era um homem tão reservado que lhe chamavam «o eremita do estanho». O filho, pelo contrário, era conhecido pelo bom humor. Antenor Patiño recebeu a herança que fez dele o «rei do estanho» e um dos homens mais ricos do mundo. Depois de se separar da primeira mulher, o boliviano casou-se com a espanhola Beatriz de Rivera. Apaixonaram-se de tal maneira por Portugal na década de 1950 que construíram uma casa em Alcoitão – onde organizaram a festa que ficou para a história.
Oriundo de uma das mais tradicionais famílias francesas, Pierre de Schlumberger tinha passaporte americano e uma fortuna monumental oriunda do negócio do petróleo. Apesar de introvertido, casou com a excêntrica Maria da Conceição, uma portuguesa com ascendência alemã, que se tornaria uma importante mecenas da arte contemporânea, apoiando artistas como Andy Warhol. Foi ainda uma das principais impulsionadoras do designer John Galliano. E uma gastadora inveterada.