As janelas abrem-se onde menos se espera: estava a ler uma compilação das crónicas que João do Rio dedicou aos costumes da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro do início do século XX quando se me escancarou a memória suave da minha avó materna (que nunca atravessou o mar). No texto dedicado aos vendedores de preces e rezas do Rio de outrora, encontro a «oração para ao deitar na cama»
Nesta cama me deito, desta cama me levanto, a Virgem Nossa Senhora me cubra com o seu manto. Se eu coberto com ele for não terei medo nem pavor, nem cousa que deste ou outro mundo for.
que é a mesmíssima que a minha avó costumava tentar recordar em certos almoços de domingo. Veio-me, por isso, a nostalgia e a saudade – as mesmas cadelas que sacodem a cauda quando passo diante da janela onde a minha avó costumava assomar para apanhar a fresca, ver quem passava e tagarelar com os vizinhos. Lembro-me das mãos cuja dura pele evocava coisas antigas e sábias, do sorriso sem artifícios, das palavras enviesadas que usava para dizer as coisas que já não eram do seu tempo ou do seu mundo.
Ainda lá está, a janela da minha avó Augusta, defronte do contentor do lixo e do terreno baldio onde às vezes jogávamos o inocente futebol dos meninos – mas há muito que ninguém a abre. A minha avó morreu e, com ela, também o constante corrupio dos primos, dos tios e de outros agregados mais distantes que gravitavam em torno da matriarca amável que ela era. A roda do mundo, expressão sua, levou-nos para sítios diversos e apartados por uma lonjura que não é física e tem apenas o tamanho que a ausência dela impôs.
Se calhar fechada para sempre, talvez a janela da minha avó Augusta se reabra algum dia transmutada num condomínio novo, num hostel, numa coisa design ou gourmet (todas as coisas antigas do Porto vão acabando deste modo). Ela, em todo o caso, não voltará a sorrir-me quando me reconhecer caminhando ao longe, nem voltarei a comer das pataniscas de bacalhau que ela fazia e deixava provar a quem lhe fosse bater à porta.
A minha avó já não deixará que eu grave as suas rezas nos almoços de domingo. É a roda do mundo, eu sei. Rai’s a partissem.
(Fotografia Manuel Jorge Marmelo)
[Publicado originalmente na edição de 02 de outubro de 2016]