Venham todos, aqui há lugar para vocês, apetece dizer

Notícias Magazine

Imigrantes ilegais. Assim lhes chama o mundo. Ora. Vá lá dizer a alguém que está a lutar pela vida que é ilegal. Lutar pela vi­da, disse. E repito. Não sair da sua zona de conforto, como propunha há tempos um primeiro-ministro de uma nação europeia quando exortava o seu povo à emigração. Nem sequer para ter uma vida melhor, dar um futuro mais sorridente aos filhos. Sem qualificativos. Dar um futuro aos filhos. Lutar pela sobrevivência. Por não morrer à fome, à sede, às mãos de um bando de crimino­sos, por ter uma religião diferente, uma etnia diferente, uma ori­gem diferente, um país diferente. É ilegal, isso?

Talvez seja, então. É assim o nosso mundo. Complexo. Como uma espécie de puzzle. Às vezes as circunstâncias fazem que as peças se ajustem. O nosso côncavo bate com o convexo de outrem e tudo se ajusta. As nossas necessidades complementam-se. Uns são pobres, outros ricos. Os ricos precisam dos pobres como os pobres precisam dos ricos. O problema é quando vem uma ra­banada de vento e as peças se baralham todas. Uma guerra. Uma crise. Um desastre natural. E a equação deixa de funcionar.

Aí transformamo-nos em nós e os outros. Às vezes, os outros já fomos nós – mas agora, porque já não somos, estamos tão diferentes deles. Houve tempos em que gente da nossa África ne­gra chegava a Portugal com a mesma ilegalidade nos documen­tos, a mesma pobreza de vida, e a mesma esperança no futuro. Houve outros tempos, um pouco mais antigos, em que essa pobre­za era a nossa, os passadores dos Pirenéus as nossas barcaças do Mediterrâneo, e os bidonvilles franceses as nossas aldeias de refu­giados. Agora… Agora tudo isso parece tão distante.

E no entanto… Tantas coisas em comum. Em cada emigran­te – legal ou ilegal – há sempre um corpo cansado da viagem, uma alma dilacerada pelas saudades, as mãos calejadas pelo tempo, os pés frágeis de pisar caminho que não se conhece, os ombros caí­dos num misto de medo e reverência para com quem teve mais sorte. A cabeça para baixo, as costas curvadas, tudo o que contri­buir para que não se repare neles.

Para quem está atento, essas coisas ficam para segun­do plano, porque o que interessa mesmo são os olhos cheios. Vi­vos. Olhando à volta e absorvendo. É como se dissessem que enquanto não acabar tudo há esperança. Enquanto houver esperan­ça há futuro. São esses os olhos que vemos nos sobreviventes dos naufrágios do Mediterrâneo. Abafam a tristeza da situação. Não nos dê Deus aquilo que conseguimos aguentar.

Como é que se reage às imagens da última semana? De coração apertado ou razão alerta? É tão difícil não ser simplista pe­rante os meninos descalços e molhados que saem dos barcos que os salvaram. Venham todos, apetece dizer. Aqui há lugar para vocês, apetece dizer. É assim que reage uma pessoa digna desse nome num caso destes. Chora com compaixão. Mas o que fazer quando se é lí­der de uma instituição, representante de um país? Como não pare­cer cruel? Não me digam que não é cruel dizer que se tem de des­truir estes barcos – uma das medidas propostas pela UE – para dei­xar os problemas longe do nosso território. Que se vai devolver os que tentam sair aos lugares de onde fogem – sendo que lá, do outro lado, reside a mesma ameaça que os fez fugir. Os que chegam po­dem até ir parar aos campos de refugiados, podem até ser salvos, mas espera-os um purgatório longo e penoso até obterem direito a uma vida normal. É possível agir macro e sentir micro? Ao mesmo tempo? É esse o desafio que se coloca à Europa em geral e a cada eu­ropeu em particular. Assim saibamos estar à altura.

[Publicado originalmente na edição de 26 de abril de 2015]