
SÃO ONZE E MEIA. Lembrei-me agora do dia que é hoje e deu-me uma vontade de te escrever. Se bem te conheço, como não ligas puto a datas, também não deves ter memorizado esta. Mas eu lembro-me: 29 de março de 2014. Faz hoje um ano que saí de casa. Aconteceram muitas coisas entretanto. Arranjei uma casa nova, depois arranjei outra. Mudei de carro. Não mudei de emprego, como queria, mas acabei por receber a promoção que de que andava atrás há tanto tempo. Menos mal. Fiz duas viagens. Fui a Roma e voltei ao Brasil. Tu dizias que não tinhas pachorra para férias no Nordeste e por isso não te apetecia voltar ao Brasil. Lembrei-me disso quando estava lá. Lembrei-me de ti. Não eram saudades. Era alívio, por não te ter a chatear-me, à procura de algum defeito no hotel. E como ainda somos amigos no Facebook, vi que por esses dias andavas a queixar-te do frio. Que irónico. Tu a dizeres mal da tua vida, com frio, e eu a beber água de coco do outro lado do mar, com os pés de molho, a agradecer as voltas da vida.
NO MEIO DE TANTAS COISAS que aconteceram, houve uma que não mudou: continuo a ter um grande desprezo por ti. Pensava que, ao fim de uns tempos, ia acabar por passar por aquelas fases todas do luto. O luto de uma relação. A raiva, a tristeza, a incompreensão, a aceitação… Isso tudo de que falam os livros, a internet e o meu psicólogo. Sim, comecei a fazer terapia. Para poder voltar a gostar de mim. Custou, mas consegui. Mas, ao contrário do que toda a gente diz (até esse psicólogo com quem gostava tanto de falar mal de ti – agora já não és assunto), ainda não cheguei à aceitação. E isso não me chateia. Gosto da ideia de te desprezar. De pensar que me és (quase) indiferente.
SABES, não foi tanto a tua traição o que me chateou. Quer dizer… isso chateou-me à brava. A ponto de te querer gritar. Chamar-te nomes. Bater-te. Mas isso seria violência doméstica e eu não desço a esse nível. O que me chateou muito, quando descobri uma mensagem no teu telemóvel, sem querer, e quando depois me pediste o meu para fazer um telefonema de trabalho, foi teres achado que eu não ia perceber. O que me chateou foi o atestado de estupidez que me passaste. O que me chateou foi o excesso de confiança que ganhaste, a ponto de usares o meu telefone para ligares para a pessoa com quem me enganavas. É preciso muita lata! E estupidez.
AINDA NÃO CONSEGUI esquecer, e vai demorar tempo até isso acontecer, tudo o que fiz por ti. As noites de ajuda no teu curso, o teu negócio, os teus momentos menos bons, a morte da tua avó, os meses de desemprego. Eu sustentei-te. Durante meses ganhei para mim, para ti, para nós… E não consigo deixar de pensar que, possivelmente, nessa altura tu já andavas a dormir com outra pessoa. E já andavas a mentir à tua família sobre a falta de dinheiro. Por falar em família… já contaste à tua mãe o que aconteceu? Já lhe disseste porque é que eu saí de casa? Porque é que, em três dias apenas, virei a minha vida do avesso? Ou ela ainda pensa que me passou alguma coisa má pela cabeça e que tu és uma pessoa maravilhosa?
NUMA COISA, porém, tiro-te o chapéu. Sabes o quanto detesto essas ideias de os homens serem assim e as mulheres assado. Sempre foste diferente da maioria. Nunca agiste como a maior parte das outras mulheres. Eras – presumo que ainda sejas – quase homem, em muitas atitudes que tens. Por isso, no dia em que descobri que me tinhas enganado, fiquei satisfeito por saber que as mulheres também metem os pés pelas mãos na hora da traição. Também negam perante as provas, também se comportam como anormais. E foi bom constatar isso.
[Publicado originalmente na edição de 29 de março de 2015]