Tirar o máximo partido do que temos

Notícias Magazine

Querido Júlio,

Nesta semana, ao subir a Rua do Carmo, choquei com o Sr. Abílio, que já não via há muito tempo. Fez-me uma festa, mas a expressão estava diferente. Perguntei-lhe como estava a mulher, e ele contou-me o trágico fim da esposa, dizendo que naquele dia fazia precisamente quatro anos que ela se teria juntado aos seus «no além». Dei-lhe um abraço e ao afastar-me pensei na tristeza do Sr. Abílio, tudo tinha mudado para ele. Saberia encontrar um novo motivo para sorrir?

Ainda na mesma rua, encontrei a Amélia, sorridente e eufórica. Disse-me que ia casar com o Zé, que era uma relação recente mas com tudo para dar certo. A Amélia sempre foi uma mulher despachada e positiva, o Zé será o seu terceiro marido. Dei-lhe os parabéns e desejei-lhe o melhor.

Ao entrar na Rua Ivens, encontrei o Artur com a sua filha Maria. A Maria está enorme e tem uns cabelos longos impecavelmente entrançados com uma flor a prendê-los: «Que bonitas tranças», disse. «Foi o papá que fez, e também pintou a minha camisola.» A Maria exibia, cheia de orgulho, no peito, as seguintes palavras: «O que faz uma família é o amor.» O pai tem razão, pensei. Reparei que a filha de uma amiga acabava de entrar na Casa da Sorte, mesmo ali ao lado, despeço-me e vou ao encontro da Alice. Cumprimento-a e ela responde-me dizendo que a vida dela estava um caos. Reparei na expressão das outras pessoas que ali se encontravam ao ouvir a Alice explicar-me que tinha vaginismo, e que o namorado tinha acabado tudo com ela, que não era a primeira vez que acabava uma relação por esse motivo, e que tinha muito azar, e por isso só lhe restava jogar, podia ser que tivesse mais sorte.

E continuou: «Sinto que tenho uma barreira, tenho pavor da penetração, sempre achei que ultrapassava… Mais ninguém sabe.» Fomos até ao café, e num frenesim contou-me a história da sua vida, a cerca de 120 quilómetros por hora, atropelando as palavras com a pressa de me contar tudo. Combinámos voltar a conversar.

Dirigi-me ao estacionamento para pagar, e encontro um casal que acompanhei em tempos. Reparo na barriguinha de mulher grávida e ela diz: «Estamos à espera de uma menina.» Sorri, bem sei o que é ultrapassar dez anos de vaginismo. Sigo para o consultório e sei que hoje terei pelo menos três casais com uma situação semelhante. Acompanho cada vez mais casos de vaginismo, em mulheres de todas as idades. Nem todos compreendem a situação, e desconhecem que é uma disfunção sexual que consiste num espasmo involuntário da musculatura do terço exterior da vagina, que impede a penetração e não uma obstinação feminina. O medo e a dor ativam uma resposta condicionada que a impede de avançar para o coito. Muitas vezes o casal vai-se afastando e evitando qualquer contacto sexual, porque acha que, não havendo penetração, pouco resta. Para mim o sexo é muito mais do que penetração, comparo-o a um menu de degustação em que cada prato deve ser saboreado sem pressas de se chegar ao fim. É esse o princípio do prazer. Mas será que sabemos realmente saborear o nosso caminho, aproveitar cada momento, tirar o maior partido do que temos?

Júlio, hoje fico por aqui.

Que a chuva outonal não o molhe em demasia e que a brisa fresca do mar se mantenha mansa.

[Publicado originalmente na edição de 8 de novembro de 2015]