Os saltos dos sapatos das quatro ministras fotografadas esta semana pelo Expresso no Terreiro do Paço voltaram a impressionar-me. Esta era uma reportagem que assinalava o facto de, pela primeira vez na história, estarem só mulheres à frente dos ministérios que ainda estão na praça. Como assinala a reportagem, vieram todas de saltos altos para tirar a fotografia. Assunção Cristas, ministra da Agricultura, de vertiginosos stiletti, dez centímetros, equilíbrio mais que instável. Paula Teixeira da Cruz, da Justiça, preto total de agulhas finas, como as que se levam para um baile de debutante. A MAI Anabela Rodrigues e a ministra das Finanças Maria Luís Albuquerque, ainda que uns centímetros abaixo, mas sem deixar os seus calcanhares por créditos alheios.
Numa reportagem feita para assinalar um facto que acentua a banalização e a normalidade do poder no feminino – o Terreiro do Paço é, ele próprio, o símbolo do poder político – que papel têm estes saltos altos? Acentuam a vitória do gineceu? Diminuem-na? Fragilizam-na? Vamos lá fazer antropologia da moda. As opiniões dividem-se. Há uma corrente do pós-feminismo contemporâneo, um pouco pop, que diz que os saltos são como uma espécie de símbolo do triunfo feminino, são expressão de uma mulher sem preconceitos, que não precisa de queimar sutiãs para se sentir poderosa.
Permito-me, pelo menos, duvidar. Tantas e tantas vezes, de dedos esmigalhados em ângulos de quase 90 graus, me perguntei se é possível alguma mulher sentir-se emancipada debaixo desta tortura. Não me parece. E não me venham com a questão do hábito. Não há hábito que nos valha, como acabam sempre por mostrar os joanetes depois de longos anos de provações.
Então o que nos acrescentam esses centímetros, além da altura? O poder da sedução? Isso era mais óbvio quando o lugar de uma mulher no mundo dependia exclusivamente da conquista de um marido o melhor possível que a sustentasse até ao fim dos seus dias. Hoje, estão outros valores em jogo – ou antes, é bom que estejam. Então porquê essa ideia generalizada de que as mulheres têm de andar de saltos altos? No outro dia, a série Borgen (RTP2) mostrava a primeira-ministra dinamarquesa – personagem central – a arrumar a casa com os mesmos saltos com que durante todo o dia pusera na ordem o seu difícil governo de coligação.
Que poder é esse que se sente do alto de uns stiletti? Gostava de perguntar a estas quatro ministras. A elas que, provavelmente, nunca pensaram no assunto. Assim como não tinham realizado o feito que acabaram de cumprir – um símbolo tão mais importante num país do Sul onde a desigualdade continua, na vida corrente, na economia e nas empresas, nas instituições e no pensamento, nos dados da violência doméstica, desafiando os mais básicos direitos humanos.
«Talvez porque não nos reunimos para tomar chá, talvez seja por isso que nunca nos demos conta”, dizia Maria Luís Albuquerque na reportagem. Com a sua ironia, a ministra das Finanças manifestava o desconforto comum a tantas mulheres que pura e simplesmente se esqueceram do tema, preocupadas que estavam a viver, a ser profissionais respeitadas, a ter uma carreira de sucesso.
Muito caminho já deve ter sido feito para que nem elas nem nós nos tenhamos dado conta deste facto – e já faz mais de três meses que a última ocupante se mudou, a nova MAI. Parte dele talvez tenha sido percorrido com uns desconfortáveis stiletti.
[Publicado originalmente na edição de 15 de fevereiro de 2015]