Foi como se não se tivesse passado tempo nenhum. Aqueles olhos azuis meio escondidos pelo cabelo louro a cair em mechas pela cara feita de traços delicados, apesar da barba malfeita. O cigarro ia acompanhando os intervalos das canções, ajudando o discurso. O tempo transformou-se em cápsula e parou naquele momento, selando-o.
Acho que é isso que deve acontecer com os momentos que contamos como especiais para nós. Ficam cá dentro cristalizados e um olhar, um som, um cheiro ou uma frase podem teletransportar-nos para lá, outra vez. Se a ficção científica ainda não arranjou maneira de tornar realidade as viagens ao passado, pelo menos a nossa memória permite-nos ter um vislumbre do que seria se pudéssemos reviver certas coisas importantes na nossa vida.
O que é engraçado é que há coisas que nem pensamos terem tido assim tanta importância para nós, mas que, ao voltarem, nos mostram que estávamos errados. Não têm de ser coisas grandiosas, momentos definidores. Podem ser também pequenos detalhes, coisas do dia-a-dia.
Há tanto tempo que não via aqueles três rapazes, no fulgor da idade e, em especial, o bardo-mor, o poeta que inspirou tantos como eu e que falava directamente às nossas maiores angústias e incertezas. Por ele, tantos pegaram numa guitarra pela primeira vez e escreveram canções. Escreveram-se em papel, numa confissão catártica que tanto ajuda a quem passa pelos anos de puberdade.
Como manda a maldita tradição do «rock», saiu de cena aos 27 anos. A exposição pública maciça não é de fácil gestão e digestão e eram bem conhecidos os problemas de estômago que alegadamente o levaram à heroína. As dores crónicas nas costas também o importunavam e ajudavam à raiva com que escrevia e cantava.
As figuras da música popular não são figuras menores, se comparadas com as figuras da música erudita, embora muitas vezes se assuma que sim. Descarta-se uma análise mais profunda da sua obra por todo o ruído que se criou à volta de uma fama avassaladora, mundial. À volta dos vícios e dos fait divers, esquece-se facilmente a arte de quem só queria ser artesão, não artista.
Não é a complexidade harmónica ou melódica dos Nirvana que nos prende e nos deixa sem fôlego. É precisamente a sofisticação da sua simplicidade. A forma como, despojadas de distorção e do grito, aquelas canções mantinham a sua força ou reforçavam a sua estrutura.
Voltei a ver o Unplugged in New York. Para os mais novos, o conceito do Unplugged, criado pela MTV, nos anos em que ainda era uma televisão dedicada à música, era que as bandas e artistas que fossem tocar num estúdio para uma plateia reduzida, o fizessem apenas com instrumentos acústicos. O Unplugged de Nirvana é, provavelmente, o momento mais alto do formato e um dos mais importantes na inscrição da banda na história do rock. Poucos meses antes de morrer, temos ali Kurt Cobain e as suas canções, despidas até ao essencial. As palavras passam a ter um peso maior e ainda mais visceral. É o último vislumbre do poeta-músico.
Montage of Heck, o documentário autorizado pela família de Kurt Cobain, estreará por todo o mundo em breve. Diz quem já viu que nos apresenta Kurt com uma profundidade e verdade como ainda não se havia visto. Bom, bom, seria que, em vez do legado que nos deixa, nos pudesse dar o seu testemunho na primeira pessoa, agora, sem estar cristalizado ali, há 21 anos atrás. Num mundo tão cheio de medo do politicamente incorrecto, precisamos cada vez mais dele. Não será essa, afinal, a marca do génio: a sua intemporalidade?
ANA BACALHAU ESCREVE DE ACORDO COM A ANTIGA ORTOGRAFIA
[Publicado originalmente na edição de 22 de março de 2015]